Olá MAGAFONE   Click to listen highlighted text! Olá MAGAFONE
  • Please insert widget into sidebar Customize Righ Home 2 in Appearance > Widgets

Com o aumento da esperança média de vida, o envelhecimento da população traz uma série de novos desafios a nível de saúde, sendo um deles a doença de Alzheimer. Um “ladrão” de memórias e de vidas que se estima que duplique em número de pessoas que “assalta” até 2050 na maioria dos países europeus. No Mês Mundial da Pessoa com Doença de Alzheimer, exploramos estatísticas, conceitos, sinais de alerta e abrimos o livro de histórias de quem ficou para trás a cuidar de familiares impossíveis de resgatar do tempo perdido.

“A doença de Alzheimer é a causa mais frequente de demência. A demência pode ter múltiplas causas e é caracterizada por alterações cognitivas (e não só) com expressão suficiente para interferir nas actividades da vida diária da pessoa”, explica o neurologista e coordenador da Comissão Científica da associação Alzheimer Portugal, Celso Pontes. A doença “tem várias fases de gravidade e pode mesmo já existir sem que ainda ocorram sintomas de demência. Na sua evolução, há uma perda neuronal severa predominantemente no lobo temporal do cérebro e isso ocasiona vários sintomas”, diz Celso Pontes. Entre eles, “desorientação, inicialmente no tempo, mas depois no espaço e mesmo em relação às pessoas; dificuldade em planear e em executar tarefas mais complexas; dificuldade em concentrar-se e em tomar iniciativa; dificuldade em executar actos simples como usar talheres, chaves, etc.”.

Segundo dados do 2019 Alzheimer Europe Yearbook, que se foca na prevalência estimada do número de pessoas a viver com demência na Europa, 1,88% da população portuguesa vive com demência, ou seja, de um total de 10 291 027 milhões de portugueses, 193 516 mil vivem com esta condição, sendo 133 527 mulheres e 59 989 homens. A faixa etária com maior prevalência da doença situa-se entre os 85 e os 89 anos, seguindo-se a faixa entre os 80 e 84 e as pessoas com mais de 90 anos. O estudo faz ainda a projecção para os anos de 2025 e 2050, prevendo que até este último haja uma duplicação do número de pessoas a sofrer de demência. “A cada vez maior população da Europa em conjunto com uma demografia envelhecida na maioria dos países europeus determina uma indicação clara de que o número global de pessoas a sofrer de demência seja provável de aumentar consideravelmente”, lê-se no estudo, que especifica que “Portugal excede a maioria dos países europeus no que toca ao número de pessoas com demência a duplicar em 2050. O factor-chave prende-se com o aumento significativo de pessoas com idades superiores a 70 anos”. Dado que a idade avançada é o principal factor de risco para a demência, o estudo alerta para a necessidade de investigação e investimento em sistemas de saúde e sociais que providenciem “cuidado, suporte e tratamento. As sociedades terão de se adaptar para suprir as necessidades das pessoas com demência”, salienta.

Exames e factores de risco

Segundo o neurologista Celso Pontes, quando surgem sintomas, “sobretudo alterações da memória recente, deve ser consultado o médico habitual que muito provavelmente irá referenciar para uma consulta de especialidade. Aí, para além do exame geral, do exame neurológico e da avaliação neuro-psicológica, será indicado fazer outros exames para estudo da doença, que variarão segundo os sintomas e a evolução da doença e que poderão incluir análises específicas de sangue ou de LCR, EEG, RM, PET, entre outros”. Sugere-se, pois, atenção aos sinais de alerta como “perda de memória que afecta o trabalho; dificuldade em executar tarefas domésticas; alterações de linguagem; desorientação temporo-espacial; juízos alterados; alterações de pensamento abstracto; guardar coisas fora do lugar e não as encontrar; alterações do humor e comportamento; alterações na personalidade; perda de iniciativa”.

Os factores de risco para desenvolvimento da doença de Alzheimer podem incluir, segundo a ‘Comissão Lancet para a prevenção, intervenção e tratamento ao longo da vida na demência’, “baixo nível educacional, hipertensão arterial, surdez, tabagismo, obesidade, depressão, inactividade física, diabetes, pouca interacção social”. Numa actualização mais recente deste documento (2020), acrescentam-se três condições: “o abuso de bebidas alcoólicas, o trauma crânio-encefálico e a poluição atmosférica. Grande parte ou mesmo a totalidade destes factores podem ser prevenidos ou minimizados, havendo um enorme campo de acção na prevenção da demência”, garante Celso Pontes. E que elementos preventivos são esses? “Sabemos ser estatisticamente significativa a associação da alimentação saudável e equilibrada, um estilo de vida sem excessos e uma boa actividade física e intelectual com um menor risco de doença. A alimentação e o estilo de vida têm, pois, a sua quota parte de influência na protecção do risco”, refere o neurologista.

A doença “exprime-se em cada indivíduo de forma diferente, consoante o seu estado físico, a sua personalidade prévia, a sua educação, outras doenças também presentes (co-morbilidades) e o estádio em que o doente se encontra: ligeiro, moderado ou grave”. Pode, ainda, “ter um curso mais ou menos rápido de indivíduo para indivíduo”. Muitas das suas vertentes ainda permanecem um mistério pois “uma pessoa pode, no início, já ter doença de Alzheimer e ter uma vida quase normal. Tudo depende do grau de evolução. Inicialmente, as alterações mais relevantes são alterações da memória, mas a capacidade de raciocinar, de julgar, de decidir estão presentes. Pode haver uma apreciação menos correcta, mas apenas porque faltam dados ao doente causados pela alteração da memória. Com a continuação da evolução da doença, outras capacidades são perdidas”, elucida Celso Pontes, acrescentando que “nalgumas formas de demência (Demência de Corpos de Lewy) são frequentes flutuações cognitivas e uma pessoa pode ter um desempenho bom agora e estar cognitivamente muito pior umas horas depois”. Existe, ainda, a diferença entre a memória recente que tende a ser “mais afectada” e a memória de acontecimentos antigos, “que fazem parte da memória biográfica do doente e são preservados durante muito tempo”.

Suporte para doentes e cuidadores

Focada em estudar e apoiar a população nesta doença, a Alzheimer Portugal foi criada em 1988 pelo médico neurologista Carlos Garcia com a missão específica de promover a qualidade de vida das pessoas com demência e dos seus familiares e cuidadores. “Em Portugal, há 32 anos, a informação sobre as demências e os apoios era praticamente inexistente, pelo que a constituição da associação consistiu um marco fundamental e muitos passos se deram desde então para transformar a sociedade com vista à integração das pessoas com demência e dos seus cuidadores e ao reconhecimento dos seus direitos. Actualmente, a associação conta com mais de 12 mil associados, 130 colaboradores e o inestimável contributo dos seus voluntários e de um grande leque de entidades parceiras para concretizar a sua missão”, diz a responsável pelas Relações Institucionais da Alzheimer Portugal, Catarina Alvarez.

A associação tem “desenvolvido grandes esforços para estar representada em vários pontos do país com vista a poder informar, apoiar e encaminhar as pessoas com demência e seus cuidadores para as respostas que existem na comunidade, capacitando-as para viver melhor com a doença”. Como IPSS, implementou várias respostas sociais (lar, centros de dia e serviços de apoio domiciliário) e disponibiliza serviços a preços sociais como consultas de apoio psicológico, sessões de estimulação cognitiva, terapia ocupacional, fisioterapia e outros. Catarina Alvarez salienta a importância de apoiar os cuidadores que vêem “as várias dimensões da sua vida (profissional, financeira, social e relacional/afectiva) afectadas durante um longo período de tempo, o que leva a necessidades diversas: informação e capacitação, apoio financeiro e laboral (conciliação entre a vida profissional e reintegração no mercado de trabalho após a prestação de cuidados), apoio psicológico, apoio social, nomeadamente, respostas de apoio à prestação de cuidados e para descanso/alívio”.  Neste sentido, salienta, seria importante que “a aplicação do Estatuto do Cuidador Informal a todo o território nacional se concretize com a maior brevidade para que os apoios se tornem mais efectivos”.

“Deixei de ter amor, mas tive de ser mais amorosa”

Bem conhecedoras desta realidade, Maria Rosa Matias, Helena Teixeira e Paula Oliveira são três cuidadoras que sofreram na pele a crueldade do Alzheimer. Maria Rosa Matias, de 60 anos, natural de Vila Nova de Gaia, cuida do marido, Alberto, de 73 anos, desde 2016, altura em que “começou a notar alterações desagradáveis” na linguagem e comportamento.  O primeiro diagnóstico apontava depressão, foram-lhe receitados antidepressivos e ansiolíticos, mas “o marido continuava a piorar”. Repetia-se frequentemente, ligava muitas vezes à mesma pessoa e deixou de saber fazer as suas rotinas de higiene. Finalmente, o diagnóstico correcto, Alzheimer, e o choque que se seguiu. “Não estava preparada, estava sozinha no consultório, ele ficou à porta, e chorei muito. Nunca julguei que isto viesse parar às minhas mãos, foi um balde de água gelada”, conta Maria Rosa Matias, adiantando que já era a segunda notícia de saúde que os deixava em sobressalto, pois o marido sofreu de cancro há 20 anos.

Refugiou-se nas pessoas que conhecia que também eram cônjuges de doentes de Alzheimer e através deles conheceu a associação Alzheimer Portugal. “Inscrevi-me e têm-me ajudado muito”, diz. No início, não aceitou bem a notícia. “Na primeira sessão, entrei a chorar e saí a chorar, revoltada”, conta. Mas as sessões com cuidadores e psicólogo e as formações têm sido um grande suporte quando o marido “faz asneiras. Às vezes, ralho porque não estou a contar, mas enfrento muito melhor agora, respiro fundo, falo de forma meiga, calma, para ele não se agitar”, afirma, revelando que deixou o emprego e hoje é cuidadora a tempo inteiro do marido. “Antes, estava sempre a ligar para cá e preocupava-me quando ele não conseguia ligar o micro-ondas ou tinha medo que se queimasse no fogão”, conta. A maior arma contra a doença? “Oferecer amor. Quando me casei foi na saúde e na doença. Deixei de ter amor, mas tive de ser mais amorosa para ele se sentir seguro e apoiado”, salienta, garantindo que “ainda tem muito a aprender. Arranjo estratégias e vejo o que funciona melhor, é assim que temos de levar”, diz.

Já Helena Teixeira, da Maia, cuida da mãe há 15 anos naquele que tem sido um “processo lento” mas com um “agravamento substancial nos últimos anos”. Houve, em 2004, duas situações que a deixaram em alerta: “a minha mãe apanhou o metro e a meio do caminho não sabia onde estava e o que ia fazer; e outro dia eu e o meu filho estávamos a andar de bicicleta e eu olhei para a minha mãe, que estava sentada no banco de jardim, e o olhar dela estava completamente vazio”. Marcou consulta na Clínica de Memória, no Porto, e com 70 anos a mãe foi diagnosticada com Alzheimer. Os sintomas foram agravando ao nível do esquecimento e da perda de autonomia e agora está completamente dependente. “A pessoa que era o nosso exemplo perdeu tudo e passamos a ser nós a cuidar dela. É como no filme ‘O Estranho Caso de Benjamin Button’, vamos perdendo tudo”, diz Helena Teixeira. Procura o máximo de informação sobre a doença para ter “ferramentas” e aprender a lidar. “É esse o conselho que deixo, procurar ajuda, as pessoas só estando informadas conseguem perceber. Não se fechem, com apoio tudo se torna mais fácil”, afirma.

“As outras pessoas não entendem”

Paula Oliveira, de Monção, foi cuidadora do pai até 2019, altura em que Jaime faleceu de pneumonia. Era electricista automóvel e cedo, aos 50 anos, começaram a estranhar quando ele “deixou de saber mudar uma lâmpada”. À semelhança de Alberto, também foi inicialmente diagnosticado com depressão, mesmo depois de a família alertar que o pai de Jaime tinha sido diagnosticado com demência. Aos 54 anos, a resposta acabaria por ser Alzheimer. Perdeu gradualmente as capacidades e nos últimos dois anos de vida “percebia-se claramente a degradação”. Para Paula, o pior momento foi “quando deixou de se conseguir manter em pé e perdeu toda a mobilidade”, diz, aliado, claro, a quando “deixou de conhecer a família. As pessoas mais próximas ele conseguia identificar, por gestos, apesar de não verbalizar”, afirma.

A doença do pai acabou por ser uma porta de entrada na área social e Paula criou, em 2018, a associação Dinamicamente – Por mim, por ti e por nós. “Tive tantas dificuldades, falta de informação, de formação, havia uma distância muito grande entre os cuidadores e as respostas da comunidade, então assumi esta missão de capacitar, informar e apoiar os cuidadores, para que não sintam tantas dificuldades como eu senti”, diz Paula OIiveira. Disponibiliza acompanhamento psicológico, serviço jurídico e organiza diversas iniciativas como caminhadas pela saúde mental, conversas informais e um espaço onde “as pessoas se podem dirigir com dúvidas”. Paula Oliveira acredita que foi o pai que a colocou neste caminho pois “não podemos deixar que o sacrífico da vida dele seja em vão. Quanto mais informados e preparados estivermos, a forma de enfrentar e agir será outra. Em vez de reagir e lutar contra o que é mais forte do que nós, aproveitamos o que ainda existe. Focamos no que ainda temos e não no que perdemos. Durante 10 anos, perdi o meu pai todos os dias, descrevo o Alzheimer como um senhor que entrou dentro de minha casa e foi roubando. Não sei se algum dia superarei”, revela.

Cuidar de Quem Cuida

Os cuidadores, alerta, sentem-se “perdidos e é importante encontrar alguém que fala a mesma língua. Para nós, um piscar de olho, um aperto de mão, um sorriso, é uma vitória e as outras pessoas não entendem porque têm tudo isso diariamente”, afirma, salientando como é essencial que os cuidadores também cuidem de si próprios. “Temos a mania que somos supermulheres e isolamo-nos, não pedimos ajuda mas se não estivermos bem não conseguimos ajudar”, sublinha. Com esta premissa, surge, pela mão do Centro de Assistência Social à Terceira Idade e Infância de Sanguedo (CASTIIS), a iniciativa Cuidar de Quem Cuida (CQC), depois de um “diagnóstico realizado em 2008 que identificou as várias condições que promovem a dependência entre a população sénior, nomeadamente as demências e as incapacidades resultantes das doenças cérebro vasculares. Ambas, pela sua crescente incidência, exigiram respostas específicas por parte dos serviços de saúde e social, não só para os doentes, como também para quem deles cuida em contexto domiciliário”, diz uma das responsáveis da iniciativa, Ana Pinheiro. O CQC nasce em 2009, na região do Entre Douro e Vouga, com “o objectivo de disponibilizar respostas de apoio especializado para cuidadores informais de pessoas com demência e pós-AVC”, tendo agora “alargado o apoio a todos os cuidadores”.

A iniciativa de empreendedorismo social pretende mobilizar e capacitar os recursos já existentes na rede local para que, de forma concertada e próxima da comunidade, implementem respostas de apoio como “atendimento individual (psicologia, apoio social e/ou jurídico), grupos psicoeducativos e grupos de ajuda mútua, de forma gratuita. A pandemia fez multiplicar as iniciativas de apoio em formato on-line e, neste momento, coexistem acções presenciais e on-line. O CQC desenvolve ainda workshops temáticos abertos à comunidade em geral”. Através das redes locais, em parceria com 250 entidades e com o trabalho de 500 técnicos, já apoiaram cerca de 900 cuidadores informais que procuram o CQC porque “encontram-se em situação de exaustão física e/ou emocional” ou sentem “a necessidade de desenvolver competências que lhes permitam prestar os melhores cuidados”. Nesse sentido, “são, na grande maioria, integrados em programas psicoeducativos que funcionam como espaço de partilha emocional e que permite a troca de experiências e a construção de redes de suporte social, em simultâneo com a capacitação para o (auto)cuidado”, revela Ana Pinheiro.

A aprovação do Estatuto do Cuidador Informal, salienta a responsável do CQC, “veio dar visibilidade à situação dos cuidadores no país, apesar de, nesta fase, ainda não ter impacto real e expressivo. As respostas de apoio especializadas continuam a ser manifestamente insuficientes. Louvamos as iniciativas que têm sido levadas a cabo por algumas autarquias no sentido de minimizar esta ausência de respostas na rede nacional. Em todo o caso, reconhecemos um avanço nesta matéria ainda que muito caminho esteja por fazer”, afirma Ana Pinheiro. Avanços têm sido feitos, também, garante o neurologista Celso Pontes, “no que toca ao conhecimento da patologia da doença, à hereditariedade, aos procedimentos de diagnóstico, à maneira de cuidar e de tratar, aos tratamentos que estão em desenvolvimento, à aceitação social, etc.”. Todos, doentes, familiares e médicos, gostariam de ter, obviamente, “à disposição medicamentos curativos, o que ainda não é o caso. Há, todavia, desenvolvimentos farmacológicos promissores de que num futuro próximo a capacidade de intervenção seja muito melhor”, diz Celso Pontes.

Investigação e medicamento inovadores

Neste âmbito, destacou-se a descoberta de uma investigadora portuguesa do Instituto Superior de Agronomia da Universidade de Lisboa que “analisou os extractos de etanol-água de resíduos de cortiça e do entrecasco da casca de Q. suber como possíveis novas fontes de compostos, com actividade antioxidante e inibidora da acetilcolinesterase (AChE), que poderiam ser aplicados no tratamento de doenças neurodegenerativas, como a doença de Alzheimer”, lê-se em comunicado no site daquele instituto superior. Há 20 anos que não surgiam novos medicamentos para tratar a doença de Alzheimer e este ano surgiu o Aduhelm, um fármaco previsto para lançamento na Europa em 2022 que “promete reduzir a progressão da doença”, já aprovado nos EUA mas que ainda não reúne consenso geral.

Sobre a temática do Alzheimer, foi também desenvolvido, pela editora Outriders & PR Studios, o jogo ‘Back Then’, vencedor do prémio ‘Melhor Jogo’ do PlayStation Talents de 2019. Divide-se, essencialmente, em duas partes: “a parte do presente, em que se está numa cadeira de rodas, tem-se Alzheimer, e está-se num lar. E outra, no passado, em que vemos o deterioramento da personagem em si, como a família lida com ele, várias interacções, vários casos de como tudo se vai sucedendo”, explicaram os responsáveis pelo jogo noutra ocasião. O objectivo do jogo é promover a reflexão ao viver “através dos olhos de um doente de Alzheimer”, mostrando que “as pessoas, antes de as perdermos, perdem-se a si próprias. É uma doença como mais nenhuma”.


“É como se eu, autor do livro, fosse a memória dela”

O jornalista, comentador e escritor lança agora o segundo livro sobre o Alzheimer, ‘Diário de um Corpo sem Memória’, mais uma vez dedicado à companheira Vera, internada e a sofrer desta doença há vários anos. Numa entrevista exclusiva à Magafone, fala sobre este ‘deserto’ e o desconhecimento e incompreensão que ainda existem relativos à doença.

Vera ainda não tinha 60 anos quando lhe foi diagnosticada a doença de Alzheimer. “A manifestação da doença levou a uma transformação radical na vida de toda a família e mais tarde levou a que eu escrevesse dois livros”, diz o jornalista, comentador e escritor Fernando Correia. Escrito como uma espécie de “catarse”, o primeiro livro sobre a temática ‘Piso 3 Quarto 313’ retrata “os preliminares da doença” até a companheira ser internada na casa de saúde pertencente à Congregação das Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus. “Retrata o drama, que durou 10 anos, até à inevitabilidade do internamento. Foi um alerta para todas as pessoas com problemas idênticos e teve uma aceitação muito grande. Primeiro, porque retratava um caso real e, depois, porque preenchia algumas falhas em Portugal. Não havia nada que fosse terra-a-terra e simples dedicado aos cuidadores e familiares de doentes com Alzheimer”, diz Fernando Correia. O feedback foi tão positivo que o livro “ainda continua a vender. Não é normal um livro em Portugal vender como vendeu o ‘Piso 3 Quarto 313’. As pessoas agradeciam-me por ter escrito o livro e pelos ensinamentos que transmite e, mais interessante, alguns médicos, entre os quais o próprio director da casa de saúde, escreveu ‘obrigada por nos ter ensinado uma forma diferente de ver a situação porque, como médicos, estamos habituados a analisar apenas a parte clínica e esquecemo-nos do resto”, revela Fernando Correia.

Agora, lança ‘Diário de um Corpo sem Memória’, a continuação do primeiro livro mas com um objectivo diferente. “Retrata estes primeiros sete anos de internamento em duas partes distintas: a primeira conta a história de uma vida feliz, desde que nos conhecemos até surgir a doença, e a segunda é a parte da tragédia, o momento em que se sabe que aquele corpo não tem memória”, diz, destacando o “vazio tremendo, tanto para ela que não sabe, como para a família que sabe que não tem memória. É como se eu, autor do livro, fosse a memória dela. Estive no quarto 313 a escrever a história de cada dia, substituí-me à memória dela. Porquê? A doença de Alzheimer continua a ser um mistério, não tem solução, não se sabe quando virá a cura. Depois de escrever o livro, li-o alto no quarto, não sei se ela ouviu. Mas e se ela ouviu? Sabe tanto como eu”, afirma Fernando Correia, emocionado.

Ambos os livros foram ponderados antes de publicar – “demorou tempo a escrever, a pensar se devia ser escrito e publicado, mas a família decidiu que sim” – pois retratam memórias pessoais e dolorosas de alguém que é tão querido. “Os primeiros anos foram muito difíceis. A doença de Alzheimer vai evoluindo de uma forma muito lenta mas muito dura até chegar à fase de perder completamente a memória e com ela todas as capacidades cognitivas. Ela não compreendia, por exemplo, que eu tinha de sair para ir trabalhar, gritava e agarrava-se a mim para não sair de casa”, recorda Fernando Correia, que se viu obrigado a contratar cuidadores, mas sem sucesso. “Contratei cuidadores e ela batia neles. Encontrei várias vezes a casa vazia e ela sentada lá em baixo num degrau à minha espera, os cuidadores debandavam”, revela. A situação agravou-se quando começou “a zangar-se com os netos e a pegar em facas. Dramático”, diz. Pedia para ir almoçar fora mas quando estavam no restaurante esquecia-se de usar os talheres. “Eu levava-a com a maior alegria, mas chegava ao restaurante, pedia um prato de sopa e começava a comer à mão. Eu sei que ela está doente, mas as outras pessoas não, então riem, vão buscar colheres e atiram para cima da mesa, e isto dói profundamente”, conta. Até nas compras era uma gestão complicada. “Calçava 30 pares de sapatos. Eu tenho paciência para isto, as pessoas que estão a vender os sapatos não têm. No momento em que saíamos da loja, uma empregada dizia para a outra ‘esta gaja é maluca”, lembra.

À noite, ela não conseguia dormir e, em consequência, ele também não. “O médico que a acompanhava dizia-me ‘vá para outra cama’ e eu tentei ir, mas ela vinha atrás de mim. Se eu sentia que ela estava a dormir e depois saía, a meio da noite acordava com ela aos gritos à minha procura”, revela. A situação tornou-se impossível e o internamento foi a única solução. Mas, com ele, veio “outro drama. Onde vamos internar um doente com Alzheimer? Procurámos, visitámos, as nossas filhas foram incansáveis, lares caríssimos sem qualquer espécie de técnica apurada para a doença”, conta. Até que um amigo lhe falou na casa de saúde da Congregação das Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus que era “específica para doentes mentais e com larga experiência na doença de Alzheimer. A partir do momento em que ela é internada, a história é outra, tem cuidadores específicos, médicos especialistas, pessoal habilitado a cuidar dela”, refere. Foi preciso, contudo, “enquanto ela tinha alguma capacidade cognitiva, explicar-lhe que estava ali para se curar”.

“Já não sou quem era e isso é devido à doença da minha mulher”

“O meu coração está a tentar dar resposta às dúvidas”

Neste momento, Vera já “não é autónoma, não tem qualquer tipo de reacção, não fala, nem conseguem perceber se ela reage à visão. Deixou de reconhecer a comida, fechou a boca e teve de se fazer uma intervenção cirúrgica para injectar os alimentos”, diz Fernando Correia, que denota o cansaço físico e psicológico deste “deserto. Tudo isto tem sido uma angústia. Já não sou quem era e isso é devido à doença da minha mulher, ela obrigou-me a repensar a vida, a maneira de estar, estudar a própria existência humana. Nunca tinha pensado sobre isso e agora penso profundamente”, afirma, adiantando que depois do ‘Piso 3 Quarto 313’, escreveu “outros livros de causas, sobre os sem-abrigo, velhos abandonados nos lares, violência doméstica, preocupações que antes lhe passavam ao lado. O meu coração está a tentar dar resposta às dúvidas”, comenta. O Alzheimer “rouba tudo. Acabando com o cérebro, acaba com o resto. Já perguntei a muitos médicos o que é mais importante: o coração ou o cérebro e eles ficam aflitos. O coração, quando para, a pessoa morre, mas e o cérebro?”, pergunta Fernando Correia.

Lamenta a falta de informação e ignorância da população em geral quanto à demência. “As pessoas estão distantes da realidade, talvez seja um problema educacional, talvez seja a dificuldade de entender que a mente é muito complicada, que há atitudes que tomamos que são reflexos dos problemas mentais que estamos a enfrentar naquela altura. Não censuro essas pessoas, o que posso é lamentar que não tenham conhecimentos mínimos acerca de doenças que são actuais. A doença de Alzheimer é uma das doenças que mais preocupação gera no mundo inteiro. Talvez pensem que nunca terão a doença, então não vale a pena preocuparem-se com ela, mas vale a pena porque de um momento para o outro a mente já não é a mesma”, alerta. E o que fazer nesse caso? “Nas Irmãs Hospitaleiras, dizem-me sempre o mesmo: ‘paciência, paz, tranquilidade e sobretudo amor’. A maior parte das pessoas não sabe o que significa a palavra amor. Eu também não sabia. Aquele amor que eu falava a várias mulheres durante os anos não valia nada. Este amor de que falo agora é que é o verdadeiro amor, pela forma de a tratar, de a ver, de estar com ela, de a dignificar, de a ajudar. Isto é que é amor”, remata.

Sugestões

Deixe Comentários

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Carrinho
  • Ainda sem produtos no carrinho.

O nosso site utiliza cookies, portanto, coleta informações sobre a sua visita a fim de melhorar a qualidade dos nossos conteúdos para o site, redes sociais e aúncios. Consulte nossa página cookies para obter mais detalhes ou clique no botão 'Aceitar'.

Configurações de cookies

Abaixo, pode escolher os tipos de cookies que permite neste site. Clique no botão "Guardar configurações de cookie" para aplicar sua escolha.

FuncionalO nosso site usa cookies funcionais. Esses cookies são necessários para permitir que nosso site funcione.

AnalíticasO nosso site usa cookies analíticos para permitir a análise de nosso site e a otimização para efeitos de usabilidade.

Redes SociaisO nosso site coloca cookies de redes sociais para mostrar conteúdo de terceiros, como YouTube, Instagram, Twitter e Facebook. Esses cookies podem rastrear seus dados pessoais.

PublicidadeO nosso site coloca cookies de publicidade para mostrar anúncios de terceiros com base em seus interesses. Esses cookies podem rastrear seus dados pessoais.

OutrosO nosso site coloca cookies de terceiros de outros serviços de terceiros que não são analíticos, média social ou publicidade.

Click to listen highlighted text!