A vontade de contar histórias levou-a para o jornalismo, mas duas epifanias depois, Bárbara Guevara mudou o rumo da sua vida em busca de cumprir o propósito que sempre a norteou. Hoje é professora de yoga e terapeuta emocional e, tantos momentos dolorosos mas transformadores depois, sente-se completamente realizada, escolhendo viver no momento presente, não construindo projecções ou traçando objectivos e guiando-se pelo mote “logo se vê”.
As histórias e as causas sempre se afiguraram ligadas a um propósito de vida que Bárbara Guevara foi descobrindo. Em pequena, queria ser actriz porque “adorava teatro” e fascinava-a “perceber o que é estar do lado de dentro da história e senti-la”. Com um lado artístico e criativo desenvolvido desde cedo, apaixonava-a “tudo o que fosse criar. Esse desejo foi evoluindo e à vontade de contar histórias associaram-se muitas causas, sempre fui activista, queria poder criar e contar histórias, mas também ter a projecção necessária para as fazer chegar ao maior número de pessoas possível”, diz. O desejo de ser actriz “acabou por perder força” e foi substituído pelo jornalismo. “Achei que era uma boa forma, com alguma credibilidade, de poder passar as mesmas histórias e as mesmas causas que de outra maneira não seriam conhecidas ou não teriam visibilidade”, refere. Uma “vontade de querer fazer barulho quando era necessário partilhando histórias que precisavam de ser ouvidas”.
Trabalhou em alguns dos mais prestigiados órgãos de comunicação nacional, como a SIC Notícias, a TSF, a RTP, entre outras produtoras e órgãos de comunicação social estrangeiros, até que veio o primeiro filho e com ele uma epifania: “Não estava a contar assim tantas histórias. Percebi que, como jornalista, não estava a preencher o meu propósito, não me sentia realizada. Fazia um jornalismo de secretária, em que recebíamos coisas das agências, um jornalismo de telefone, sem grande substância, que não me interessava. O jornalismo de causas, humano, não existia, foi-se perdendo”, aponta Bárbara Guevara, explicando que “valores mais economicistas falaram mais alto. Não era o que eu queria fazer e não sentia que era particularmente boa naquele tipo de jornalismo. Esquecia-me do nome das pessoas, saía em reportagem para fazer coisas de política e não sabia com quem estava a falar, porque aquilo não me interessava minimamente. Cumpria o meu papel dentro do que era suposto, mas achei que estava a ocupar um lugar que se calhar era o sonho de alguém”, afirma.
Epifanias que provocaram transformações de vida
A consciência de que estava no lugar errado dentro do meio que escolheu fê-la recalcular o percurso. “Havia alguma coisa que me puxava para a parte da comunicação. Sabia que queria continuar ligada à rádio e à comunicação, mas não daquela maneira, não queria compactuar mais com o mundo jornalístico como estava, queria comunicar de outra forma. Queria gastar as fichas todas nesta área para não ficar com ‘e se?’, para que no dia em que tomasse a decisão de sair do meio essa fosse uma decisão consciente e sólida”, diz Bárbara Guevara, garantindo que “fez tudo o que podia fazer dentro do meio da comunicação social. Experimentei tudo o que queria ter experimentado e percebi onde me podia encaixar, o que me dava gozo e o que não dava, o que podia ser uma porta para um propósito, e encontrei resposta na animação de rádio, encontrei muito mais liberdade do que alguma vez tive enquanto jornalista, para falar, expressar-me, trazer para a frente algumas causas, fazer mais companhia às pessoas, aí cumpri um pouco mais o meu propósito”, explica.
Melhor orientada mas ainda não no caminho certo, seguiu-se nova epifania em 2017. “Havia sempre uma certa resistência, sempre qualquer coisa que não estava a correr bem, como se eu estivesse a forçar uma coisa que não era suposto, e o universo tem formas muito interessantes de comunicar. Na linguagem do surf, quando o mar nos cospe cá para fora, nós temos de sair, não é para insistir, e o mar estava sempre a cuspir-me e eu a entrar e andávamos nisto, até que uma dessas vezes eu percebo que não é suposto insistir mais e voltar para ali”, revela Bárbara Guevara, finalmente compreendendo que “não era aquele o caminho que a ia realizar. Faltava-me qualquer coisa. Quando fazia rádio, fui honesta comigo e percebi que me aborrecia, abria a boca de sono a meio de um take e comecei a pensar ‘se calhar não é bem isto’, não me desafiava. Aí, finalmente assumi o que sempre foi a minha vida desde os 15 anos”, afirma.
Vegetarianismo, Yoga e Budismo
Na verdade, já antes dos 15, Bárbara Guevara começava um caminho “sem ponto de retorno”. Aos 12, assistiu à matança do porco e isso transformou completamente a sua alimentação. Abraçou o vegetarianismo e “nunca mais comeu carne. Tomei consciência daquilo que estava a comer, o que estava no meu prato e as implicações que isso tinha, e uma vez que se sabe já não dá para não saber, não fui mais capaz de comer carne. Tenho inclusive alguns amigos que ainda não viram o documentário ‘My Octopus Teacher’ porque gostam tanto de polvo que não querem deixar de comer polvo, sabendo que quem vê aquele documentário não consegue voltar a comer polvo”, comenta. Três anos depois, estava a ler os livros de Yoga da mãe e a entrar no conhecimento do mundo budista. “Através dos livros dela comecei a ter contacto com o yoga e todo esse mundo espiritual. Na minha família, isso não era sequer uma conversa, as minhas avós eram muito católicas e eu cresci nessa cultura, mas eu sempre fui a pessoa mais céptica e agnóstica, não me identificava, e comecei a dedicar mais tempo à espiritualidade e a desbravar caminho”, conta. Aos 15, começou a praticar yoga, inicialmente “uma prática física sem grande sustentação espiritual” e depois já com “entrada na porta da meditação. Aprendi que tudo fazia parte de um todo, aprofundei práticas e quando comecei a ler textos budistas não tive dúvidas que era por ali”, refere.
A segunda epifania permitiu-lhe, no fundo, regressar às origens, a estas descobertas de adolescente que sempre permaneceram com ela, mas que assumiam, até então, um plano secundário. “É uma percepção intuitiva das evidências que vão aparecendo. Não é que haja um ensinamento budista que dite um caminho, é mais um convite à experiência, a observar e a ver por ti própria a realidade atrás do que a tua mente pode percepcionar. A mente interfere na forma como vemos e interpretamos o mundo e essas interpretações estão na origem do nosso sofrimento. O budismo é um convite a uma prática constante e diária do exercício de autoconsciência e cada ficha que cai é um passo que se dá para um lugar de compaixão, integrativo, em que percebemos como estamos todos tão interligados e interdependentes e não controlamos absolutamente nada, e isso é libertador”, explica. Um despertar que lhe permitiu “perceber que aquela era a sua linguagem. É aqui que me encontro, é a minha autenticidade, há pessoas para quem isto não faz qualquer sentido e outras para quem faz. Para quem fizer, estou aqui para partilhar o que posso e sei, assim como as pessoas que vêm ter comigo partilham e ensinam-me imenso. Cada um tem o seu caminho”, refere.
Efeito dominó em bom
Bárbara Guevara escolhe guiar-se pela frase “tornarmo-nos mais sustentáveis e saudáveis é um acto de altruísmo e amor pelos outros. Aprofundei a tomada de consciência. Quando escolhemos cuidar de nós e dar essa atenção, compaixão, o que fazemos por nós acaba por ser em última análise para os outros. A forma como me apresento perante o outro será mais agradável, acolhedora, calorosa e compassiva e isso vai influenciá-lo a ser assim com outros, é o chamado efeito dominó mas em bom”, elucida, salientando a importância de “olhar para dentro e fazer as pazes com a nossa história e emoções, percebendo a lei da causalidade em nós próprios. A abertura para o mundo é um acto de amor. Ao meditar, por exemplo, estou a permitir-me ter uma disponibilidade, abertura e compreensão para com os outros que vai permitir que os outros a tenham para com terceiros, e é assim que mudamos o mundo”, acredita.
A consolidar estes ensinamentos, ajudaram-na as inúmeras viagens e retiros que fez a nível mundial, tendo já vivido em Lisboa, Paris, Roma, Rio de Janeiro, Génova e Indonésia. Em França, chegou a fazer, inclusive, um retiro com o Dalai Lama, uma experiência avassaladora do ponto de vista emocional e físico onde viu “o lado mais luminoso e o lado mais escuro” do ser humano. “O tanto que havia de espiritual e absolutamente maravilhoso nesse retiro, para ouvir e aprender, foi ao mesmo tempo um exercício de observação do homem no seu estado mais primitivo. Estávamos em condições muito difíceis, era muita gente, chovia torrencialmente, muito frio, lama, poucos meios, e de repente vem ao de cima o instinto de sobrevivência das pessoas e vi coisas muito feias num sítio tão bonito. Muita coisa ecoou para mim naquele momento, foi revelador, percebi que somos todos seres humanos, que há pessoas extraordinárias mas que continuam a ter os seus telhados de vidro e histórias e isso ajuda-nos a trabalhar a compreensão, a compaixão, a aceitação”, refere. Algumas viagens foram tão transformadoras que Bárbara Guevara ia com uma expectativa e regressava com uma realidade completamente diferente. “Na minha última viagem à Índia, quis ir para os Himalaias para me retirar, dedicar-me à meditação, solitária, mas fui solteira e vim casada”, conta, entre risos, revelando sobre a Índia que “ou se adora ou se odeia. Quando nos entregamos à Índia de alma e coração, vemos o quão incrível é a experiência de lá estar e o quanto podemos aprender. Há locais magníficos no mundo onde o caldeirão energético nos ajuda a tocar em estados incríveis e com tantos ensinamentos. E é sempre bom viajar, tira-nos da bolha, especialmente quem vive no Ocidente”, comenta.
Mettaterapia e estudo do trauma
Professora de Yoga, Meditação e Budismo, Bárbara Guevara acabou por acrescentar a estas valências a de terapeuta emocional através da Mettaterapia. “O que acabou por acontecer foi que embora eu começasse a dar aulas de budismo e meditação, muitas pessoas procuravam-me para ajudá-las em diferentes contextos. Neste processo de dar a mão, surge o lado de fazer terapia. Metta significa compaixão e é uma forma de compassivamente fazer terapia usando várias técnicas, algumas muito pessoais, que ajudam nesse processo, seja ele qual for, de integrar emoções e ultrapassar obstáculos. Não há uma fórmula, é a conexão”, explica. A procura acabou por ditar “a necessidade” de desenvolver este campo. “Não fiz nada para que isso acontecesse, foi natural. Os resultados fizeram-se notar, a palavra foi passando, as pessoas começaram a vir mais, cada um usando as ferramentas que fazem sentido para ele, porque todos os caminhos são diferentes e o importante é sentirem-se bem e promover evolução no sentido de se tornarem melhores pessoas com uma vida menos sofrida”, afirma. Dentro desse caminho, dedica-se hoje ao estudo do trauma. “Inevitavelmente, este caminho foi dar à adição, ao trauma, e neste momento estou em mais uma formação, sempre a acrescentar valências e conhecimento”, refere.
No seu site, Bárbara Guevara descreve o seu percurso de vida com as seguintes palavras: “Tinha chegado a altura de viver a vida que sempre sonhei. Pelo meio vivi entre Lisboa, Paris, Roma, Rio de Janeiro, Génova e Indonésia. Senti a morte de perto. Vi partir um irmão. Perdi um segundo filho. Recuperei de um tumor. Fui despedida. Despedi-me. Separei-me. Amei. Chorei. Fui abusada. Renasci. Deixei-me ser vítima. Fui guerreira. Ri. Viajei. Descobri. Errei. Sonhei. Sofri. Gemi. Gritei. Arrisquei. Sussurrei. Aprendi. Estudei. Lutei. E sobrevivi… De cada vez, a cada instante, um novo começo ainda melhor”. Questionada sobre a força para sobreviver a tantos destes momentos, ela responde: “O discernimento ajuda bastante. Não é um processo intelectual, a capacidade de perceber para lá da evidência. A vida tem momentos a que chamamos felicidade, quando estamos alegres, tudo corre bem, estamos descansados; e depois outros que associamos à infelicidade, à dor do momento sofrido. Esquecemo-nos que estes últimos também são momentos de crescimento. É útil olhar para estes momentos sem esta dualidade, mas sim como contributos para o nosso processo, e a isso chama-se contentamento”, afirma, salientando a necessidade de se perceber que ambos “são dois lados da mesma moeda. Tinha uma aluna que me dizia que eu bato palmas quando há um momento doloroso, porque sei que isso me vai levar a um sítio melhor. Não houve uma vez em que não tenha batido no fundo e que isso, no final de contas, não me tenha levado a um sítio melhor. A capacidade de resiliência é um ponto de evolução. Não posso cuspir nos momentos mais duros porque esses momentos foram incrivelmente valiosos e necessários para chegar onde cheguei. O sítio onde estou hoje não o troco por nenhum momento eufórico dos meus 20 anos. Valeu cada passo que dei”, afirma.
Bárbara Guevara não quer, com isto, dizer que os momentos dolorosos são fáceis ou confortáveis, mas sim que é preciso confiar que mais à frente aparecerá a explicação para eles, mesmo que essa explicação não seja racional. “No momento não percebemos porque está a acontecer aquilo, o intelecto nem sempre consegue percepcionar, está constantemente à procura de uma história ou de uma justificação e muitas coisas não são perceptíveis à mente. No momento, não há conforto, dói, mas eu sei intuitivamente que me vai levar a algum lado, não sei onde, mas estou aberta e disponível para saber”, explica naquele que é um “processo que não tem nada de intelectual. É sentido, vivido, daí resulta uma epifania, uma tomada de consciência. Este caminho são constantes tomadas de consciência. Os momentos de felicidade são momentos de repouso que a vida nos dá até a um novo momento de consciencialização. Podemos levar estas tomadas de consciência com derrotismo ou podemos levá-las com interesse, curiosidade, ‘o que está a acontecer?’, isto traz compaixão para com o processo. Não há ânimo leve no processo, nem seres iluminados; é na entrega que está a resposta”, realça.
Muitas Bárbaras mas uma especial
Um percurso de vida em que foi muitas Bárbaras, mas manteve a bússola orientadora. “Fui muitas Bárbaras. Honro-as todas. Mas há uma especial. Esteve sempre lá para me amparar as quedas. Aquela que se tornou vegetariana aos 12 anos, que começou a praticar Yoga aos 15 e que cresceu com o Dhamma de Buddha no coração”, lê-se na sua página. “Esta era a Bárbara mais sábia que eu de vez em quando ia ouvindo. Quando não ouvi, fiz disparates, mas ela estava lá, ia falando comigo, ia-me avisando. Ouvir esta Bárbara foi como regressar a casa. Todas as outras são distracções, são formas de fugir do que dói, de não querer ver, de resistir”, afirma, salientando que hoje o que lhe interessa é apenas e só “a existência. Não tenho um objectivo em particular, no sentido em que não há uma meta que queira alcançar porque não sei o que vai acontecer. Não vejo os planos e projecções como benéficos, estou mais no momento a perceber onde posso ir agora e o que tenho de fazer”, refere.
Sem definir expectativas ou objectivos, acolhe “o que vier. Estar presente e intuitivamente ver o que se vai desdobrando. Se tenho algo mais para aprender ou estudar, com certeza, tenho muito para desbravar, com muita curiosidade para ver o que aí vem”, afirma, contrariando, porém, a noção de que esta é uma espera passiva. “Vivemos numa cultura em que se tem de ter projectos, ambição, andamos sempre no modo fazer. O que eu acredito é confiar no processo e, durante o que se está a fazer, fazer o melhor que se pode e sabe. Quando a entrega é genuína, interessada e de coração, naturalmente o que se desdobra é aquilo que no teu íntimo tu estás a precisar. Não há um quadro de uma imagem específica que eu quero alcançar porque isso é estar no plano do físico. Não consigo sequer conceber. Para que é que eu quero ter uma mansão ou um Ferrari? Para ter mais contas para pagar, preocupações, trabalho? Às vezes o que propomos é tão absurdo… Tenho tanto para resolver aqui dentro, não tenho tempo para estar a pensar no que vou querer daqui a um ano. A Covid veio precisamente mostrar isso, todos com grandes projectos e vem a pandemia e vai tudo para casa. A vida é isso. Reinventar, refazer, e está tudo certo. O importante é estar bem no sítio onde estamos e o que não está bem temos de trabalhar. Depois logo se vê”, remata.