A Biblioterapeuta, é assim que Sandra Barão Nobre é conhecida pela sua comunidade on-line, como aquela que, através do livro, cura as maleitas de quem a procura. Sejam essas maleitas falta de concentração, ansiedade ou apenas uma vontade de se voltar a ser leitor assíduo. No mundo dos livros, só há benefícios, diz, mas o trabalho tem de começar pelas famílias e pela leitura em voz alta.
Um termo que já remonta a 1916 mas que ainda continua a soar estranho a grande parte da população portuguesa. “A biblioterapia parece uma novidade, há muitas pessoas que acham que é uma modernice, mas esta noção de que a leitura pode ser terapêutica e providenciar respostas, ideias novas e alívio pela identificação que temos com os personagens e com as situações que eles vivem, é tão antiga quanto a nossa necessidade de escrever”, diz Sandra Barão Nobre, a biblioterapeuta. “Quando digo que sou biblioterapeuta, percebo pela cara da pessoa se é leitora ou não. Um leitor percebe pela junção das duas palavras o que está subjacente a este método, aquele que não é leitor pergunta “fazes terapia com a Bíblia?” (risos) A Bíblia, curiosamente, assim como outros textos religiosos, foi dos primeiros textos cuja leitura foi recomendada em contexto hospitalar”.
Apesar do nome só ter surgido nos anos 50, antes disso a prática já existia. “Já vem da antiguidade clássica, era algo que os gregos, os romanos, os próprios egípcios já conheciam. A noção foi sendo trabalhada, pensada e a partir do século XVIII começa a escrever-se em contexto clínico, através de médicos da área da saúde mental que também eram leitores. Aliás, aposto que eles enquanto leitores já o sentiam porque todos os grandes leitores sentem que, de alguma forma, fazem biblioterapia sozinhos, é algo que fazemos intuitivamente, quando estamos mal, irritados, tristes, procuramos um livro”, explica. A biblioterapia foi crescendo e eventualmente estendeu-se à área do desenvolvimento pessoal. “A biblioterapia é o método de apoio ao desenvolvimento pessoal e à resolução de problemas através da leitura. Pressupõe que haja um mediador da leitura que conhece as necessidades do cliente e vai pesquisar títulos que se adequem a essas necessidades e o ajudem a resolver os problemas e a atingir objetivos. Pode aplicar-se em qualquer idade e pode, inclusive, ser feito de forma preventiva, quando se sabe que um problema se vai apresentar”, garante Sandra Barão Nobre, assegurando que há mais na biblioterapia do que livros de auto-ajuda. “Até são os que uso menos”.
Livros até para sair de comas criativos
Tudo começa com uma conversa descontraída com o cliente para “conhecê-lo o melhor possível”, saber o que levou a procurar o serviço e de que forma pode ajudá-lo. Depois, há um grande trabalho de pesquisa. “A pesquisa é uma parte fundamental do trabalho de um biblioterapeuta, são muitas horas à procura dos livros certos para aquela pessoa. O truque não será tanto aquele livro ou autor, mas saber que géneros literários é que a pessoa prefere, o que é que ela recusaria ler, quanto tempo disponível tem para ler diariamente, se gosta de livros pequenos ou mais densos, saber o que costumava ler e depois assegurar um compromisso com o cliente”, enumera. As razões por que as pessoas mais a procuram? “No último ano, recebi muitas queixas relativamente à falta de concentração. Quem me procura são pessoas que já leram muito e deixaram de ler e que sabem que se voltarem a ler, ajudará na resolução dos seus problemas. Antes disso, eram mais os quadros depressivos, ansiedade, pessoas que precisavam de ajuda para escolher livros porque se sentiam perdidas no meio da grande oferta do mercado ou sentiam que tinham esgotado o filão do género literário que leram durante muitos anos e agora tudo parece igual… Também tenho pessoas nas áreas criativas, com projetos por terminar, que se sentem bloqueadas, são leitoras e sabem que através de um conjunto de livros podem sair desse coma criativo”.
“A leitura não é só o significado da palavra, é o calor da voz, que é reconfortante, a melodia, a cadência, o ritmo, o tom, tudo isso conta”
Apesar de a biblioterapia estar mais difundida no resto do mundo, Portugal já começa a dar sinais de avanço nesta área. “Paulatinamente. Não vou dizer que há muita gente, mas de ano para ano tenho cada vez mais clientes. Curiosamente, tenho muitas pessoas do Brasil interessadas em fazer processos terapêuticos comigo e é uma alegria poder chegar tão longe”, afirma Sandra, explicando as diferenças. “No Brasil, há muito mais abertura para tudo o que é novo, são mais abertos, curiosos, gostam de experimentar; aqui somos mais cépticos, desconfiados, conservadores. Nos EUA, Reino Unido, Canadá, Brasil e até na Europa, França, Bélgica, já têm biblioterapeutas muito conhecidos, a biblioterapia não causa tanto espanto, até porque são países onde há mais leitores”, afirma. Lê-se tanto como se deveria em Portugal? “Não. Não se lê tanto como se deveria e estamos a perder leitores, mas não somos só nós, o mundo está a perder leitores que lêem por prazer. Mas em Portugal partimos já em desvantagem porque saímos de uma ditadura não há tanto tempo quanto isso, o país tinha muitos analfabetos, só uma elite lia e nós temos estado a tentar recuperar”. A leitura na escola não cumpre a função pretendida. “Há muitos professores que sentem que estão a matar leitores à partida com a leitura recomendada”. Mesmo durante o estalar da pandemia, quando todos os outros países registaram um aumento do consumo de livros, Portugal não acompanhou. “Somos dos poucos países em que durante a pandemia se consumiram menos livros. Já estávamos com um atraso crónico e agora estamos a ficar conquistados pelos ecrãs e pela imagem, logo é ainda mais difícil formar novos leitores”.
As famílias têm o papel mais importante
Sobre a predominância dos ecrãs, Sandra Barão Nobre tem muito para dizer. A biblioterapeuta sublinha que criar novos leitores, especialmente na infância, só é possível através do envolvimento da família. “O grande papel está nas mãos das famílias, são as primeiras mediadoras de leitura. Se a pessoa nasce numa família onde se lê e onde há livros em casa e há o hábito de ir à biblioteca, à livraria, como programa de família, essa relação, que é uma relação de afecto com os livros e as histórias, o momento de contar a história antes de adormecer, partilhar conversas à mesa ou em casa sobre livros e histórias, fica a memória carinhosa pelo objecto livro e isso é uma marca que fica e que ajuda a que mais tarde se tornem leitores e se definam como tal”, explica, acrescentando que mesmo os “leitores que não nasceram em famílias com estas condições e se fizeram leitores mais tarde,se fizeram leitores porque se cruzaram com alguém que tinha uma paixão pelo livro”. Deve-se ler em voz alta até quando as crianças não têm capacidade para perceber o que está a ser dito. “Há pais que, por serem leitores, já lêem em voz alta antes do bebé nascer porque o bebé no útero já ouve e depois, quando o bebé nasce, mesmo não entendendo, lêem porque a leitura não é só o significado da palavra, é o calor da voz, que é reconfortante, a melodia, a cadência, o ritmo, o tom, e tudo isso conta, muito antes de aprendermos palavras”. O caminho neurológico daquelas palavras que ainda não são inteligíveis, diz Sandra Barão Nobre, já está a ser construído. “Uma criança que durante os primeiros anos de vida é exposta a um maior número de palavras, quando vai para a escola, entra num vórtice ascendente de progressão”. E o efeito é completamente diferente consoante o meio como é apresentada a informação. “Não é a mesma coisa a criança olhar para o rosto de um adulto – pai, mãe, avós, irmão mais velho – que lê uma história e a criança ouvir a mesma história através de um ecrã”.
“Gostava de no futuro vir a trabalhar sobre o prazer de ler com as famílias portuguesas”
A leitura em voz alta, que habitualmente se perde quando crescemos, foi ressurgindo nos últimos anos. “Hoje em dia, há esse ressurgimento da leitura em voz alta muito por causa do trabalho que as bibliotecas públicas têm feito em Portugal, que é absolutamente excepcional, no esforço de criar novos leitores, através da hora do conto. Houve também um ressurgimento dos clubes de leitura, nas bibliotecas e livrarias, surgiram iniciativas de leitura em voz alta em bares, galerias de arte e museus. Nos EUA e no Reino Unido, por exemplo, é muito comum o autor ler um excerto do seu livro em voz alta”. Sandra Barão Nobre acredita que é mais uma forma de “combater o afastamento, a desumanização e de obrigar o ser humano a desacelerar. “Andamos todos com uma série de doenças do tempo e a biblioterapia e a leitura têm essa grande virtude de permitir reorganizar o nosso tempo”.
Ler para quem precisa de conforto
Nesse sentido, espera que em breve possa retomar o projeto que a levava a ler em voz alta às cabeceiras dos doentes internados no Hospital de Santo António e também do outro lado do vidro das incubadoras dos prematuros do Centro Materno-Infantil do Norte, onde trabalhava de perto com as famílias dos recém-nascidos. Duas iniciativas paradas na sequência da pandemia. “Gostava de retomar o voluntariado e de voltar a trabalhar com essas famílias. Isso é o meu projecto mais ambicioso, mas falta financiamento e este projecto parado inquieta-me, especialmente agora que as autoridades começam a perceber o prazer de ler. Só se é leitor pela vida fora quando há prazer na leitura, é isso que faz ler regularmente. O prazer de ler vai começar a ser trabalhado e eu gostava de poder contribuir, de fazer esse trabalho com as famílias, desde o primeiro momento, mesmo aquelas famílias que não têm hábitos de leitura, levá-las para as bibliotecas, dar-lhes formação. Se os miúdos vivem numa casa sem livros e os estão permanentemente agarrados aos telefones, não se pode pedir milagres aos professores. Gostava de no futuro vir a trabalhar sobre o prazer de ler com as famílias portuguesas”, afirma, revelando, ainda, que, além disso, está a tentar levar o seu trabalho ao mundo corporativo, onde a “resistência” ainda é grande.