Olá MAGAFONE   Click to listen highlighted text! Olá MAGAFONE
  • Please insert widget into sidebar Customize Righ Home 2 in Appearance > Widgets

São mais raparigas a sofrer de bullying e mais rapazes a praticá-lo. O aspecto físico continua a ser o principal motivo das agressões, o recreio o lugar mais escolhido, num contexto de abuso de poder que começa na pré-adolescência, entre o 5.º e o 7.º ano, e tem graves impactos negativos em quem está do lado errado da balança. A solução? Prevenção e formação em empatia para todos os envolvidos. Bullying é violência e as escolas começam finalmente a olhá-lo como um problema sério.

Criado no ano passado para mapear o fenómeno do bullying em Portugal, o Observatório Nacional de Bullying (ONB) apresenta dados indicativos de que este problema, que sempre existiu, continua bem presente por todo o país, mesmo nas escolas que falham em percepcioná-lo. No primeiro ano de funcionamento do ONB, receberam 407 denúncias de situações de bullying, a maior parte perpetradas por elementos do sexo masculino. São os rapazes que mais agressões praticam em comparação com as raparigas, sendo elas as que mais sofrem de bullying. A média de idades para as agressões começa na pré-adolescência, 11/12 anos, entre o 5.º e o 7.º ano, com o recreio como lugar de eleição, seguido da sala de aula e da biblioteca.

Nas tipologias de violência, o bullying psicológico continua a ser o mais praticado (92,10%) e, apesar do cada vez maior uso das novas tecnologias e do crescimento do cyberbullying, a forma presencial a mais utilizada (74,20%).  O motivo para a humilhação? Aspecto físico lidera com 51,80%, sendo também expressivos motivos como resultados académicos, idade, diversidade ou sexo. Na vítima, os impactos são notórios: dificuldades de concentração (32,20%), tristeza (31,20%), dificuldade de sono (27,50%), ansiedade (27%), vergonha (25,60%) e dores de cabeça (23,10%). A médio-longo prazo, 45% precisam de apoio psicológico e 19,90% de tratamento médico. Em risco de vida, 14,30%.

Em 67% dos casos, constata o Observatório, as denúncias vêm de encarregados de educação ou ex-vítimas, com média de idades de 32 anos. Vítimas e testemunhas ocupam os últimos lugares da tabela, mostrando que a denúncia pelo próprio não é o primeiro recurso. O mesmo constatou a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), que no ano passado recebeu 55% de denúncias por telefone, a maioria por denunciantes (56%) e instituições (24%), contando apenas com 17% de denúncias pelas vítimas. Quando uma denúncia é recebida, garante a APAV, “presta-se o apoio adequado consoante cada situação, sendo partilhada informação acerca dos próximos passos (como falar com a direcção da escola ou apresentar queixa na polícia, por exemplo) e recomendado sempre o diálogo entre pais, crianças, professores e/ou outros cuidadores”. A instituição tem trabalhado o bullying através de campanhas de sensibilização e acções de formação em escolas junto dos alunos e de profissionais de ensino.

Mapear o fenómeno do bullying

O Observatório Nacional de Bullying surge no âmbito de um projecto de prevenção desenhado pela Plano i e aprovado pela Direcção-Geral da Saúde, intitulado Plano B – Programa de Combate ao Bullying. No âmbito da execução do projecto, tornou-se fulcral “detalhar o fenómeno” e assim foi criado o Observatório. “Só conhecendo em pormenor e profundidade [o bullying], conseguimos ter uma visão clara e especializada”, explica a organização do ONB. Numa primeira fase, a equipa constituiu-se com voluntários da Plano i da área da Psicologia e da Criminologia, concentrando-se, agora, na Presidente e Vice-Presidente da Plano i, ambas psicólogas. O número de denúncias que têm recebido é substancial mas, acreditam, trata-se apenas da “ponta do icebergue. Sabemos que estas denúncias representam muito pouco daquilo que é a nossa realidade nesta área. Mesmo assim, são números absolutamente avassaladores e assustadores”, salientam. Quanto ao facto de as denúncias reflectirem com muita frequência a violência exercida sobre crianças e jovens do género feminino, apenas vem reforçar “aquilo que a literatura apresenta. Existe um recorte de género, fruto das nossas vivências numa sociedade em que as relações de poder transportam frequentemente o rapaz/homem para uma posição de impulsividade e agressividade e as meninas/mulheres para lugares de vitimização”, afirmam.

A falta de denúncia pelas próprias vítimas é, segundo as psicólogas, explicada por estas se “sentirem desprotegidas e frequentemente culpabilizadas pelo seu processo de vitimização. Sentem também que é necessário fazer prova daquilo que vivem/viveram e que nem sempre existem espaços de segurança para se poderem expressar e pedir ajuda”, elucidam. Para o ONB, “muitas pessoas ainda não sabem lidar com o bullying. Há um vazio legal que deixa espaço para formas de agir diferentes de local para local e que não sustenta a resolução assertiva deste problema grave”, apontam. Apesar de haver uma maior predominância nas denúncias quanto ao bullying presencial, as psicólogas alertam que o cyberbullying “tem contornos ainda mais complexos no que diz respeito à prova da sua existência e à culpabilização de quem o pratica. Não podemos esquecer que o bullying on-line pode ter um alcance muito maior e consequências extremamente graves”, avisam.

Relação de poder desequilibrada

O Observatório serve, acima de tudo, para retratar os contornos do processo de bullying que “tem na sua base uma relação de poder entre quem pratica e quem sofre. Lembramos que as consequências do bullying trazem frequentemente alterações significativas no funcionamento geral das vítimas, acarretando quadros de psicopatologia (depressão, ansiedade, automutilação, ideação suicida, entre outros). Estes quadros devem ser trabalhados por profissionais da psicologia altamente especializados em espaços de segurança para as vítimas. Ou seja, nem sempre a escola onde o bullying acontece, nem o psicólogo escolar, são o local seguro e o profissional especializado que uma vítima de bullying deve ter direito”, elucidam. A violência física continua a ser “mais valorizada” mas “a violência psicológica/emocional deixa marcas profundas no desenvolvimento psico-emocional das crianças e jovens”.

O OBN cria consciência sobre os números do bullying, mas também promove palestras nas escolas e responde a “pedidos de ajuda que chegam, orientando as pessoas na resolução dos problemas. Infelizmente, em Portugal, temos combatido o bullying por reacção a situações graves que são noticiadas. Trabalhar por reacção não nos permite desenvolver uma estratégia nacional concertada e estruturada que permita compreender o fenómeno e preveni-lo antes que ele aconteça. A falta dessa estratégia leva também a que não exista uma acção orientada para a eliminação e tolerância zero a este fenómeno e de apoio especializado a vítimas e agressores envolvendo todas as pessoas da comunidade escolar e familiar”, salientam as psicólogas, acreditando que “a legislação poderá ser um passo para garantir que se atribui um peso a esta matéria, fazendo pressão para a criação da tal estratégia”.

Vítima de bullying fundou associação

A combater o bullying na linha da frente, está a No Bully Portugal, uma organização internacional cuja célula portuguesa foi fundada por Inês Freire de Andrade e pela mãe. A jovem quis fazer a diferença porque já tinha passado pelos dois lados: bully e vítima de bullying. “Passei por isso no 9.º ano e depois vi muita coisa a acontecer no Secundário que não me agradou, então sempre pensei em como se poderia resolver este problema. Na altura, estava à procura de um projecto social que beneficiasse a sociedade e acabei por encontrar a No Bully. Fez imenso sentido porque utilizava a Inteligência Emocional e o Coaching e achei interessante implementar em Portugal porque não havia uma resposta eficaz. A minha mãe trabalha na área de desenvolvimento pessoal e achou que se começássemos a desenvolver estas competências nas crianças, haveria mais capacidade para evoluir do que começar com adultos de 40 ou 50 anos”, explica Inês Freire de Andrade, que acredita ser uma “motivação extra” quando se trabalha com situações pelas quais já se passou. “Compreende-se melhor e tem-se mais empatia. É uma área que me motiva e é mais fácil envolver-me. Já tinha trabalhado noutras causas, como a insegurança alimentar, mas estou longe de saber o que isso é. São todas boas causas mas quando é a nossa agarramo-nos mais”, afirma.

O bullying, salienta, é “um comportamento agressivo entre pares em que existe uma diferença de poder entre os dois lados. Há um lado que está em superioridade, seja física, seja social, e que consegue assim inferiorizar o outro lado”, refere. As consequências são “variadas e dependem da capacidade de resposta do alvo e da sua rede de apoio (família e amigos). A saúde mental da criança/jovem fica posta em causa pelos ataques constantes à sua integridade”, diz. Ainda há, lamenta Inês Freire de Andrade, “muito pouca informação” sobre a matéria. “Vão havendo alguns estudos, mas são sempre limitados, teria de ser feito algo a nível nacional, com questões para os alunos e não para os professores, que têm uma visão diferente da realidade. Há muita coisa que acontece e que eles não sabem”, aponta. Têm de ser feitas “as perguntas certas. Não é perguntar ‘sofreste de bullying no último mês?’, mas sim ‘no último mês, com que frequência é que te bateram e chamaram nomes?’, temos de desmontar o conceito”, explica. Nas formações da No Bully Portugal nas escolas, os questionários não utilizam a palavra bullying porque “as pessoas ainda não percebem que certas situações são bullying, como a exclusão social, que é ignorada e que pode ser tão grave quanto o bullying físico”, explica.

A contribuir para esta desinformação, estão os adultos. “Um adulto numa escola vê uma situação de agressão, três miúdos a bater noutro, e pensa ‘é um conflito’. No intervalo seguinte, outro adulto vê a mesma situação e conclui a mesma coisa e assim chega-se à conclusão que não existe bullying na escola porque cada um pensa que são acontecimentos isolados. Só quando a criança conta que já lhe estão a bater todos os dias há cinco meses é que se cria consciência. Lembro-me que, na minha altura, falei uma vez com uma professora e ela achou que era algo passageiro”, recorda Inês Freire de Andrade, destacando a “falta de formação” sobre estas matérias. “Não se ensina nos cursos de professores ou na formação dos auxiliares. É preciso informação e vontade das pessoas de mudar a forma como lidam com o assunto. Ainda acontece ignorarem porque acham que as crianças estão a exagerar, especialmente com o bullying não físico, mas também há o outro extremo, mandar os miúdos suspensos para casa, castigá-los, rotulá-los de monstros, o que não resulta em mudança de comportamento”, elucida. Vários estudos comprovam que a política de castigo e tolerância zero face ao bullying tem o efeito oposto, apenas potenciando a frustração e retaliação dos agressores. “Não há qualquer tipo de compreensão nem transformação para algo positivo. Percebo a intenção de quem o faz, erradicar o bullying, mas não é pelo castigo que vão mudar. Quando a criança é expulsa, fica com mais raiva. O objectivo é reabilitar ou transformar a atitude. Felizmente, com o nosso método, é possível”, salienta.

Empatia: a chave que desbloqueia a agressão

A base do método inovador da No Bully Portugal é a empatia e, pelo mundo, diz a associação no seu site, esta estratégia resolve em 90% as situações de bullying, trabalhando todos os envolvidos: vítima, agressor, observadores, apoiantes. “Trabalhamos com as escolas para mudar a cultura em relação ao bullying para uma cultura mais empática, de maior compreensão, entre crianças e adultos. Temos formações para professores, auxiliares, pais, alunos. Trabalhamos um ano com cada escola, fazemos formações e depois criamos uma equipa dentro da escola que vai responder aos casos de bullying quando eles surgem. O objectivo é que fiquem autónomos para conseguirem ir resolvendo”, explica. Em Portugal, o sucesso da estratégia também tem sido comprovado. “As escolas que estão a implementar dizem-nos que resolveu a situação, algo simples mas bem feito que consegue parar o bullying”, diz. Já acompanharam 13 escolas nesta caminhada, mas o grande obstáculo persiste. “Há escolas interessadas mas sem dinheiro para fazer o projecto, é uma gestão difícil e por isso estamos a angariar fundos para chegar a mais escolas”, refere.

A empatia, acredita Inês Freire de Andrade, é uma competência como qualquer outra, alguns de nós temos uma apetência natural para ela mas “todos temos a capacidade de a desenvolver. Tudo são competências e elas podem ser promovidas ou negligenciadas. Se viveres numa família em que as pessoas são desagradáveis e não se preocupam umas com as outras, a tendência é repetir padrões. Se nunca te ensinaram a ser bondoso, não vais ser, porque achas que essa é a forma natural de estar em comunidade. São coisas que se aprendem com a educação e a interacção”, afirma. Por isso, a informação é tão importante. “Acredito que a educação, dada de uma forma compreensiva, se as pessoas tiverem abertura, é o melhor caminho para se esforçarem e transformarem o que fazem. Quem não teve oportunidade de aprender, não sabe que está a fazer mal. Claro que há pessoas com a mentalidade ‘quando andei na escola, safei-me, os miúdos têm de aprender a defender-se’. Mas tem de se perceber se aquela criança tem capacidade naquele momento para dar resposta. As crianças precisam de alguma autonomia, mas não é atirá-las aos lobos e desenrasquem-se”, salienta, até porque em casos extremos a vítima pode tirar a sua própria vida. “É uma frustração muito grande não se conseguir dar resposta à situação, pensa-se ‘não sou capaz, o que tenho de fazer para eles pararem, sinto-me sozinho”, enumera.

Estigma da denúncia pesa sobre as vítimas

Ainda há, diz Inês Freire de Andrade, medo de denunciar o bullying. “Há a cultura do ‘queixinhas’ e os adultos incentivam isso ‘não venhas fazer queixinhas’, mas se calhar aquela criança naquele momento precisa do apoio do adulto e quando não o tem, além de medo do bully, fica com receio da rejeição do adulto. Se levam uma resposta destas, pensam que não vale a pena contar aos adultos e como não há garantia que se contar não haverá retaliação, não contam”, explica a responsável da No Bully Portugal, acreditando que também existe “a vergonha de admitir que se é vítima. Não admitem por orgulho e sofrem em silêncio para não dar parte fraca”, refere. Inês Freire de Andrade sublinha que nas escolas tem de haver um procedimento claro para denunciar o bullying. “Em muitas escolas, funciona como uma espécie de telefone estragado. A criança conta aos pais, que decidem se vão à escola, à polícia ou resolvem com a outra família. Falam com a professora que desvaloriza, ‘não foi nada de especial’, confrontam os agressores que dizem ‘não fiz nada’, e fica por ali, a direcção nem chega a saber. Só quando há um problema mesmo grave é que chega à direcção que depois diz ‘nunca tivemos bullying nesta escola e agora apareceu isto’, porque não sabem das situações do dia-a-dia que param algures na cadeia. Isto é o resultado de não haver um processo claro para denúncias, seja uma caixa, um e-mail, um formulário, algo que toda a gente tenha acesso (alunos, pais, professores, auxiliares). A maior parte das escolas não tem isto implementado e as vítimas acabam por recorrer a alguém que desvaloriza a situação por que estão a passar”, aponta.

Neste problema, poderiam ajudar os psicólogos escolares mas eles são em número insuficiente. “Um profissional por 1000 alunos e o seu foco principal é a orientação vocacional. Outros, têm ainda de dar apoio psicológico a crianças com problemas graves. Por isso, o bullying acaba por ser só mais um problema. Temos colaborado com psicólogos mas não têm muito tempo para dar resposta”, conta, atirando que “se houvesse um psicólogo por escola era bom”, poderia ajudar a mudar mentalidades. “Temos de desmistificar o que é uma brincadeira. Uma brincadeira é quando toda a gente se está a divertir, se há alguém que não está a gostar, já não é uma brincadeira. É difícil traçar o limite, porque há miúdos que gostam de andar à luta e não se chateiam, para eles é só uma brincadeira, mas pode haver um miúdo marginalizado e maltratado para quem as mesmas brincadeiras são bullying porque ele não tem capacidade de resposta, está a sofrer. Se começa a chorar, fica chateado, afasta-se, pede para parar, são sinais que não gosta, por muito inocente que pareça a brincadeira”, realça. Há na maioria das escolas um “processo ineficiente” na forma como se lida com o bullying, quer de desvalorização, quer de castigo, que prolonga no tempo a acção e resolução da situação. “O processo é tão ineficiente… Às vezes o bullying está há meses a acontecer e não se tomou qualquer medida. Contam-me cada situação… As vítimas contam ao director de turma e ele confronta o bully em frente à turma toda, nomeando a vítima, é péssimo, é uma exposição enorme para aquela criança que provavelmente no intervalo vai sofrer retaliações. Não acreditam na vítima, põem em causa o seu testemunho… Há muita coisa que acontece que não devia acontecer”, aponta.

Para a No Bully Portugal, o grande objectivo é manter todas as crianças seguras do bullying. Uma utopia? “Ainda há muito para melhorar. Portugal está, de acordo com estudos da UNICEF, ao mesmo nível dos EUA, no que toca ao bullying. Há países na Europa com índices muito mais baixos, nós não estamos bem classificados. O nosso sistema de ensino é muito conservador, está atrasado e relega estes problemas para segundo plano”, aponta Inês Freire de Andrade, dizendo que embora já se fale mais em bullying, ele apenas ganha destaque em casos mediáticos. “É preciso escândalos para as pessoas acordarem, como o atropelamento que aconteceu no Seixal. As pessoas não se interessam por casos do dia-a-dia e alimentam-se destes grandes casos à custa das vítimas. O rapaz do Seixal só ficou conhecido porque foi atropelado, senão era mais um a ser perseguido. Não devia ser necessário chegar a esse ponto”, atira, revelando que nas escolas os professores admitem que gostariam de falar mais sobre estas temáticas mas “não há tempo. Todo o sistema de ensino está em sobrecarga e a empatia perde o lugar quando se está em exaustão. A máquina de dar matéria está implementada e as emoções perdem-se, é preciso uma mudança muito grande”, afirma.

Histórias reais do efeito devastador do bullying

Igualmente vítimas de bullying foram Inês Oliveira e Mariana Machado. “Não me recordo de um momento específico até porque o bullying não é uma situação pontual, mas sim um conjunto de acções que se vão prolongando no tempo”, começa por dizer Inês Oliveira, que viu os supostos amigos virarem bullies. “Eram pessoas que faziam parte do meu grupo de ‘amigos’, ou seja, colegas com quem passava os intervalos e convivia. A partir de um dado momento, passaram de ‘amigos’ a bullies”, conta, sobre três bullies e alguns apoiantes, a par de todos os restantes que “embora não estivessem envolvidos de forma activa, estavam a par e observavam. Começaram a isolar-me do meu grupo de ‘amigos’ e da própria turma. Posteriormente, começou a ser verbal, com ofensas e humilhações, e por fim deu-se o cyberbullying. Raramente fui alvo do bullying físico, mas por vezes acontecia nas aulas de Educação Física”, lembra.

Na altura, frequentava o 8.º ano, tinha 14 anos, e a Internet foi uma ferramenta utilizada pelos bullies para criar os piores pesadelos de Inês Oliveira. “O pior impacto foi mesmo o cyberbullying. Criaram grupos no Facebook e adicionaram centenas de alunos, que mesmo que não comentassem, estavam lá e não saíam. No grupo chamado ‘Todos odeiam a Inês’, costumavam fazer publicações a humilhar-me e a ofender-me. Posteriormente, criaram contas com fotos de pessoas que eu conhecia para se fazer passar por elas e a partir daí desconfiava de qualquer pessoa que viesse falar comigo. Criaram um vídeo com fotografias minhas a humilhar-me, a chamar-me nomes, coisas desse género, e ligavam-me ou enviavam mensagens em modo anónimo. Durante anos, desconfiei das pessoas que estavam atrás dos computadores e dos telemóveis”, revela. Despoletou “várias emoções negativas” potenciadas pelo facto de, com a Internet, “a situação prolongar-se pelo dia/noite e entrar ‘pela casa adentro’. A qualquer momento, estava a ser alvo e não tinha um espaço seguro que por vezes quem é vítima de bullying tem porque à partida em casa está protegido”, explica.

Sentia-se “desprotegida. Não queria frequentar a escola porque as situações decorriam nos intervalos e nas aulas. Sentia medo, humilhação, tristeza, raiva, ansiedade e inquietação. É muito difícil lidar com todas estas emoções em tão tenra idade, pois a escola é todo o nosso dia-a-dia, não tinha outros ambientes onde pudesse procurar sentir-me bem. Por vezes, questionei-me ‘se a vida é isto, o que estou aqui a fazer?’, não sentia vontade de continuar a viver porque todo o meu contexto era negativo e foi muito difícil procurar coisas boas da vida onde me agarrar”, revela. Todo o tempo sem ter um motivo específico para ser vítima das humilhações que não a pura “diversão” dos colegas. “Os bullies eram os meus ‘amigos mais próximos’. Quando começaram a sentir frustração por não corresponder ao que queriam, começaram a usar-me como alvo de diversão”, diz.

Escola desvalorizou e mãe sentiu-se “impotente”

Nessa altura, Inês Oliveira chegou a recorrer à ajuda dos adultos. Contou à mãe que a ajudou sempre que pôde, mas que nem os melhores esforços resultaram face à falta de apoio na escola. “Sempre fui bastante próxima da minha mãe e sempre partilhei com ela o que ia acontecendo na escola. Falei também com a minha Diretora de Turma, inclusive na presença da minha mãe, mas a situação foi completamente desvalorizada com a típica conversa ‘é normal, por vezes essa situação acontece nestas idades’ e nada foi feito”, lembra. A situação foi agravando-se e chegou até a ser, em situação de confronto, culpabilizada pela própria mãe de um dos bullies. “De forma geral, os professores e o psicólogo da escola desvalorizavam a situação. Tinha, inclusive, uma professora de Educação Física que por vezes humilhava-me e isso contribuiu em larga escala para piorar a situação. Uma vez, levei com uma bola de propósito, saí da aula e a professora repreendeu-me à frente de todos”, lembra. Hoje, olhando para trás, gostaria sobretudo de ter tido um maior apoio. “Tudo se passou e nunca aqueles alunos foram repreendidos ou levados a refletir sobre as suas acções”, refere.

Inês Oliveira só se sentiu segura quando saiu da escola. “Nunca me senti confortável enquanto estudava naquela escola, ou seja, até ao 12.º ano, porque as pessoas sabiam o que se tinha passado e por vezes comentavam. A situação durou entre o 8.º ano e o 9.º, sendo que depois no 10.º ano pedi transferência de turma. Para aceitarem o meu pedido, tive de escolher outra disciplina porque era a única razão válida na óptica da escola. Só quando saí da escola, quatro anos depois, é que senti que tinha uma nova oportunidade para recomeçar a minha vida”, diz, contando que “até lá vivia sempre ansiosa, sentia-se um alvo e tinha receio da exposição com medo de ser novamente humilhada. Mesmo nas redes sociais, quando recebia um pedido de amizade ou para seguir a minha conta, se não conhecesse a pessoa ou fosse amigo/conhecido dos bullies, bloqueava com medo que a história se repetisse. Cheguei a ter mais de 100 pessoas bloqueadas”, recorda.

A longo prazo, conseguiu recuperar investindo no desenvolvimento da sua inteligência emocional, o que lhe permitiu “lidar com estas memórias de forma construtiva. Sinto que estou mais atenta a estas situações no meu dia-a-dia porque o bullying não acaba quando fazemos 18 anos ou terminamos o secundário. Sinto que contribuiu para o desenvolvimento da minha empatia e tornou-me numa pessoa mais preocupada com os outros e com a saúde mental. Tornou-me numa pessoa mais forte por olhar para trás e ver o quão forte fui ao ter ultrapassado aquela situação desesperante”, afirma. Pegou, então, nessa força, e hoje faz parte da equipa da No Bully Portugal. “Embora não seja a única razão para trabalhar na No Bully Portugal, foi um forte motivo. Gosto muito de ajudar as pessoas e por isso procurei uma associação e causa com que me identificasse e o facto de ter passado pela situação ajuda-me bastante a conseguir bons resultados”, afirma.  

Quando a diferença nos torna em alvo de chacota

Já Mariana Machado sabia o motivo por que a escolheram como alvo. “Nasci com paralisia cerebral, o que me afectou os membros inferiores (coxeio, não tenho muito equilíbrio, às vezes caio no chão)”, explica. Uma condição completamente fora do seu controlo, mas isso não impediu os colegas de a fazerem sentir “diferente. Desde que entrei na escola, percebi que era diferente dos outros pelos olhares e comentários dos pais e colegas, mas a situação começou a ganhar dimensões maiores após a escola primária. Lembro-me de me chamarem ‘anormal’ e se rirem muito”, recorda. Os comentários faziam-na sentir “bastante triste. Sentia que ninguém gostava de mim e comecei a acreditar naquilo que me diziam: que era horrível e que ‘por ser assim’ não valia a pena viver”, revela.

O bullying começou quando tinha 10 anos e prolongou-se até aos 16/17 anos, mas para Mariana Machado é difícil definir uma linha de tempo até porque “as atitudes discriminatórias não cessaram: ainda há muito preconceito em relação às pessoas com deficiência”. Muitas das situações por que passou, o cérebro “apagou-as”, talvez devido a um “mecanismo de defesa. Soube por uma pessoa que presenciou a situação que quando eu tinha 11/12 anos um rapaz bateu-me e chamou-me anormal. Não me lembro desta situação em específico, mas lembro-me vivamente da tristeza que sentia na altura”, afirma. Nunca partilhou com ninguém a dor que a atormentava. “Guardei para mim porque, a determinada altura, pensei que os bullies tinham razão. Alguns professores (principalmente de Educação Física) também não tinham formação para me conseguirem incluir nas aulas, e isso fazia-me sentir ainda mais à parte e sozinha”, refere. Sentiu-se “triste, irritada, cada dia mais doloroso do que o anterior. Não gostava da escola, só queria integrar-me e ser ‘como os outros’ para sentir que pertencia”, conta. Na altura, teria ajudado se “conhecesse pessoas com quem se identificasse (outras pessoas com deficiência, pessoas com uma mente aberta e inclusiva) ou se tivesse começado logo, desde criança, a fazer terapia”, diz Mariana Machado, acreditando que se tivesse acontecido nos tempos actuais, “as coisas talvez fossem diferentes porque se fala mais em bullying e discriminação”.

Efeitos a longo prazo? “Vivo com depressão. Esses acontecimentos da minha vida podem não ter sido a origem, mas certamente tiveram um impacto muito negativo na minha vida. Hoje em dia, não me sinto à vontade num grupo de pessoas, tenho dificuldade em confiar e medo de ser excluída”, confessa. A terapia, que levou a cabo durante algum tempo, ajudou a “organizar o pensamento e a aprender algumas técnicas de relaxamento para o dia-a-dia. Hoje, acho que uma das maiores forças é mostrar vulnerabilidade. Vulnerabilidade não é fraqueza, é sinal que somos humanos. Ninguém deve ter medo de falar de bullying e devemos estar disponíveis para ouvir o outro sem julgamentos – quer seja uma criança ou um adulto – pois nunca sabemos o que está a acontecer na vida da pessoa naquele momento”, salienta.

Escolas cada vez mais atentas ao bullying

Para melhor compreendermos os procedimentos das escolas na forma de lidar com a problemática do bullying, conversámos com uma especialista em Psicologia da Educação que é também coordenadora do Serviço de Psicologia e Orientação do Agrupamento de Escolas de Argoncilhe, em Santa Maria da Feira.  “O bullying acontece em todas as escolas e em muitos outros contextos em que os jovens estão inseridos. Não se limita a diferenças de estratos sociais, pode acontecer a qualquer um, ninguém está livre de ser vítima de bullying ou até de ter um comportamento mais agressivo”, explica Márcia Azevedo, salientando que hoje em dia banalizou-se o conceito de bullying mas é preciso distinguir o que são acções “com características de crueldade” que precisam de ser “olhadas e trabalhadas de forma diferente. Trata-se de bullying a partir do momento em que a outra pessoa entende o que foi dito ou feito como algo que a feriu”, salienta.

Márcia Azevedo garante que “as escolas estão cada vez mais atentas à situação. A Direcção-Geral da Educação, face a tantas queixas que foi recebendo, sentiu necessidade de pedir às escolas que estivessem atentas às situações de bullying. As directrizes indicam que deve haver um conjunto de medidas que incentivem à adopção de comportamentos adequados por parte dos alunos e à diminuição das situações de bullying em contexto escolar, regras muito claras nos regulamentos internos da escola”, realça. Além disso, o bullying tem de ser trabalhado com vários intervenientes e em várias frentes para que o resultado seja “eficaz. A escola deve olhar para o bullying de forma preventiva, não deve só actuar quando o problema aparece. Temos de trabalhar em rede – Escola Segura, Saúde Escolar, Educação para a Cidadania. São importantes os projectos em que os alunos tenham uma voz activa, muitas vezes o trabalho entre pares tem mais resultado do que de adulto para jovem”, diz, exemplificando com as actividades nos intervalos que, de forma lúdica, os põem a trabalhar em conjunto temas sérios. Nos intervalos é também essencial a vigilância dos assistentes operacionais. “Têm um papel importantíssimo nas questões do bullying porque muitas vezes estão na linha da frente e apercebem-se das situações de conflito, são eles que identificam estas situações”, afirma.

Desenvolvimento das competências socioemocionais

Existem, actualmente, vários programas que trabalham as questões do bullying, como o Previne-te, que aborda a violência nas relações, ou a Academia de Líderes Ubuntu, que fomenta a interajuda, autoconhecimento e resiliência, mas também diversas acções de formação, para professores e alunos, relacionadas com os diferentes tipos de bullying, recursos sobre a temática disponibilizados numa plataforma on-line e a iniciativa Brigadas Positivas, que ensina os jovens a mediar conflitos entre eles. “Apostamos nesta vertente preventiva, mas claro que há situações em que temos de passar para um plano mais remediativo e interventivo”, refere Márcia Azevedo, que não concorda com a premissa de que os psicólogos escolares estão mais direccionados para a Orientação Vocacional. “Um psicólogo da Educação faz muito mais além disso, está em muitas áreas e projectos da escola, tem uma actuação diversificada e um olhar atento em relação ao bullying. O psicólogo tem de trabalhar no desenvolvimento das competências pessoais, sociais e relacionais, é esse o nosso trabalho. Trabalhar o bullying é trabalhar essas áreas. Cada vez mais as escolas começam a perceber que não podem descurar as competências socioemocionais porque estão relacionadas com questões da saúde mental”, frisa.

À porta do gabinete do Serviço de Psicologia, o bullying chega de diversas formas, seja através da vítima, seja de colegas que testemunharam abusos. Caso seja a vítima a expor-se, “em primeiro lugar congratula-se a coragem de pedir ajuda. Num primeiro momento, quando uma criança ou jovem é vítima de bullying, tem muito medo de dar este primeiro passo. A partir do momento em que o passo é dado, parabenizamos por partilhar e confiar em nós. Depois disso, averiguamos a situação para perceber qual o trabalho necessário a fazer e que competências estão deficitárias”, explica Márcia Azevedo, enaltecendo a necessidade de um trabalho envolvente. “Se é importante trabalhar a vítima, também é importante trabalhar o agressor e todos os envolvidos. No bullying, não há só dois actores”, afirma. Traçando um perfil das vítimas de bullying, a psicóloga refere que habitualmente são crianças ou jovens que “precisam de trabalhar competências relacionais e sociais, com baixa auto-estima, cuja autoconfiança está desacreditada, têm dificuldades de comunicação, em ser assertivos, em dizer ‘não gosto que faças isso, estás a magoar-me’. Temos de trabalhar neles a resiliência e a autonomia”, refere. Já o agressor é o completo oposto: “gabarola, gosta de se armar, de mostrar poder, tem em défice a capacidade de se colocar no lugar do outro e precisa de trabalhar a empatia”.

Cada interveniente é trabalhado individualmente, mas também há sessões de grupo. “Se percebemos, por exemplo, que existe mau-estar numa determinada turma, fazemos uma sessão e depois convidamos a Escola Segura para os fazer ver que também existe uma parte judicial nesta questão”, acrescenta. A psicóloga partilha, inclusive, alguns dados chocantes que aprenderam com estes parceiros. “Numa recente acção da Escola Segura, um agente contou que segundo os dados recentes de um estudo, quem foi agressor entre o 6.º e o 9.º ano, tendencialmente até aos 24 anos de idade será punido criminalmente pelo menos uma vez”, revela. Outro estudo, diz, aponta que “1 em cada 3 crianças e jovens entre os 13 e os 15 anos já sofreu ou está envolvido em situações de bullying. Não podemos descurar estes estudos”, refere. É fundamental, por isso, trabalhar a empatia. “Temos de desenvolver nos jovens a capacidade de empatia. Em situações com tendência para serem agressivos, devem procurar alguém que os ajude na regulação das emoções, isso quebra o ciclo vicioso da agressão. Mas é um trabalho complexo e moroso”, afirma. Apanhadas no meio de tudo isto, as famílias acabam por também precisar de suporte. “É preciso apoiar as famílias, quer do lado da vítima, quer do lado do agressor. É preciso compreender o porquê do comportamento agressivo da criança, abrir o canal de comunicação. Se só trabalharmos a vítima, não chega”, salienta. Sobretudo, é preciso “transmitir calma aos pais. A escola tem de estar de mãos dadas com a família e juntas tentarem perceber a melhor forma de actuar. No caso da vítima, a família tem de se sentir apoiada. No caso do agressor, a família tem de mostrar empatia para com a vítima porque os pais são os modelos da criança e se ela vir que os pais são empáticos isso contribui para o desenvolvimento dessa competência”, explica.

A psicóloga está satisfeita com o caminho que tem sido feito. “Aqui na escola consegui mostrar que a Psicologia é muito mais que um trabalho individualizado e remediativo, passa muito por um trabalho preventivo. A fixação dos psicólogos nas escolas e o alargamento do número destes profissionais permitiu o desenvolvimento dos projectos que temos hoje. Estamos nas questões disciplinares, nas questões educativas, no conselho pedagógico, nas transições escolares, nos hábitos de estudo, estamos em muitas frentes e ainda bem. O caminho é continuar a apostar em programas de competências socioemocionais que desenvolvem nos jovens civismo, empatia, comunicação assertiva, resiliência, fundamentais para a diminuição de comportamentos agressivos”, afirma. Como remate, Márcia Azevedo deixa alguns sinais de alerta sobre possíveis situações de bullying para evitar que um problema se transforme numa tragédia sem remédio. “Um desinteresse pela escola, recusar-se a ir para a escola, diminuição da atenção e da concentração. Pode interferir com a autoestima e a autoconfiança, um jovem que gostava de estar em grupo começar a isolar-se. E situações mais graves, alterações alimentares que podem gerar distúrbios alimentares, crises de pânico e ansiedade e, no extremo, tentativa de suicídio ou suicídio consumado pelo desespero que não os deixou pedir ajuda”, enumera, referindo a importância de “desbloquear tudo aquilo que foi bloqueado pela situação de agressão ao longo do tempo”.

Sugestões

Deixe Comentários

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Carrinho
  • Ainda sem produtos no carrinho.

O nosso site utiliza cookies, portanto, coleta informações sobre a sua visita a fim de melhorar a qualidade dos nossos conteúdos para o site, redes sociais e aúncios. Consulte nossa página cookies para obter mais detalhes ou clique no botão 'Aceitar'.

Configurações de cookies

Abaixo, pode escolher os tipos de cookies que permite neste site. Clique no botão "Guardar configurações de cookie" para aplicar sua escolha.

FuncionalO nosso site usa cookies funcionais. Esses cookies são necessários para permitir que nosso site funcione.

AnalíticasO nosso site usa cookies analíticos para permitir a análise de nosso site e a otimização para efeitos de usabilidade.

Redes SociaisO nosso site coloca cookies de redes sociais para mostrar conteúdo de terceiros, como YouTube, Instagram, Twitter e Facebook. Esses cookies podem rastrear seus dados pessoais.

PublicidadeO nosso site coloca cookies de publicidade para mostrar anúncios de terceiros com base em seus interesses. Esses cookies podem rastrear seus dados pessoais.

OutrosO nosso site coloca cookies de terceiros de outros serviços de terceiros que não são analíticos, média social ou publicidade.

Click to listen highlighted text!