São testemunhos arrebatadores, de quem travou uma batalha que não pediu e sobreviveu encontrando forças que não sabia que tinha. Muitas sentiram o nódulo no peito e correram a confirmar o diagnóstico que intuitivamente já sabiam, cancro da mama, o mais comum entre o sexo feminino com uma incidência que tem vindo a aumentar ao longo dos anos. É preciso falar sobre ele, reforçam as sobreviventes oncológicas, para que nenhuma mulher se sinta sozinha na caminhada mais difícil da sua vida.
“O cancro inicia-se a nível da mama, pode ser ao nível dos ductos mamários ou ao nível do estroma, onde estão as células que formam o tecido mamário. O processo de génese de um tumor demora imenso tempo, às vezes décadas. No início, a proliferação de células está confinada. Quando conseguimos detectar o tumor na fase precoce, dizemos que é um tumor in situ, que está só naquele sítio; se esse tumor não for detectado, se as pessoas não valorizarem qualquer sintoma que surja, então ele vai crescer e passa a ser um tumor invasor. A partir do momento em que se torna um tumor invasor, a probabilidade de haver disseminação é grande”, é assim que a coordenadora do Grupo de Patologia da Mama do Hospital S. Sebastião, em Santa Maria da Feira, Teresa Santos, explica o processo de aparecimento desta doença que todos conhecemos como cancro da mama.
O cancro, explica, aparece quando “existem alterações a nível celular e molecular que levam à formação e ao aparecimento de células malignas”, as quais têm capacidade de reprodução e nenhum mecanismo natural para travar o seu crescimento. Embora hoje em dia “haja muito conhecimento em relação ao cancro da mama”, continuam em aberto as verdadeiras causas do seu aparecimento. Há, claro, factores de risco, “a nível genético e de ambiência”, diz Teresa Santos, destacando as gravidezes tardias e as mulheres que não têm filhos. “Sabemos que a mama só atinge o seu verdadeiro desenvolvimento, os lóbulos, aquando da gravidez, mais especificamente da lactação. Uma mulher que nunca esteve grávida nunca terá uma mama completamente desenvolvida e quando um órgão não está completamente desenvolvido tem mais probabilidade de sofrer efeitos carcinógenos”, salienta a médica, reforçando que a gravidez precoce, a amamentação e uma maior quantidade de filhos são factores protectores contra o cancro da mama. Outros factores, por sua vez, ainda são “polémicos”, não havendo consenso sobre a sua ligação com o cancro da mama, como é o caso da “a pílula, anticoncepcionais orais e uso da terapêutica hormonal de substituição para as mulheres pós-menopausa”.
Tratamento à medida de cada paciente
Os estudos avançados sobre esta doença permitem que hoje o tratamento seja feito “à medida de cada paciente. A noção de que existem fármacos que damos a todas as doentes está completamente ultrapassada no caso do cancro da mama. Há muito conhecimento molecular e cada vez mais os tratamentos são realizados em função do tipo de tumor”, explica Teresa Santos, referindo que existem quatro subtipos moleculares: luminal A, luminal B, HER2+ e triplo-negativo. Os dois primeiros habitualmente são tratados com cirurgia, dependendo, claro, do “tamanho e grau” do tumor. Já os triplo-negativos, “em função do tamanho, muitas vezes começa-se pelo tratamento primário sistémico (quimioterapia ou hormonoterapia)”. São abordagens diferentes, diz Teresa Santos, “com base no conhecimento hoje em dia que faz com que o tratamento do cancro da mama seja muito personalizado e dirigido”. E quando é que a mastectomia se torna a única opção? “Hoje cada vez menos. Um dos índices que nos permite avaliar a qualidade do serviço que prestamos às nossas doentes é saber qual a percentagem de mastectomias que se fazem num determinado serviço. Cada vez mais temos armas terapêuticas que podem evitar a realização dessas intervenções, por exemplo situações de tumor localmente avançado, tumores que ao nível da mama têm um crescimento grande, antigamente obrigavam-nos – porque eram um tumor grande e porque a relação entre o tumor e a mama não era favorável – logo à partida a fazer uma mastectomia; enquanto hoje em dia, com os tratamentos sistémicos primários (quimioterapia, hormonoterapia, anticorpos monoclonais), esses tumores podem inclusivamente desaparecer. Cada vez mais podemos fazer cirurgia conservadora da mama porque conseguimos reduzir esses tumores”, afirma.
A taxa de sobrevida, elucida, não tem tanto a ver com o tipo de tratamento mas sim com “as características tumorais. Há sempre tumores mais agressivos do que outros, há o timing em que são descobertos… Em 80% dos casos, o primeiro sítio para onde os tumores drenam é para a axila. Se tivermos um tumor inicial com uma axila negativa, ou seja, o tumor ainda não está a nível axilar, a probabilidade de existir a nível sistémico, de haver metástases ocultas, é baixa, logo naturalmente essas doentes têm uma percentagem de sobrevida muito maior do que aquelas em que existe um tumor avançado, com uma axila muito positiva”, refere. Há décadas a trabalhar nesta área, Teresa Santos já perdeu a conta ao número de diagnósticos que teve de dar. “Não é fácil mas ao longo da vida vamos ganhando experiência e o importante é darmos a notícia de uma forma profissional, competente, criando uma relação de confiança com a doente. Nunca dei uma notícia destas de forma fatalista, não tenho esse direito, devo alertar mas não tirar a luz do fundo do túnel, as pessoas têm de ter esperança”, salienta, acrescentando que as doentes precisam de saber que “há ali alguém que se preocupa com elas, que está ali para o que for necessário”.
Acompanhamento durante cinco anos após remissão
Mesmo quando chega a boa notícia, de que o cancro está em remissão, ainda não dá para virar a página porque durante cinco anos a vigilância é obrigatória. “É isso que está preconizado, as doentes são tratadas e depois ficam em vigilância, idealmente nos primeiros 2 anos de 3 em 3 meses, alternando entre cirurgia e oncologia, depois de 6 em 6 meses e ao fim de 5 anos passa a ser anual. O doente que teve cancro da mama deve fazer, durante toda a sua vida, pelo menos uma vez por ano, uma mamografia e uma ecografia mamária, assim como cintilografia óssea e TAC, para ver se existem metástases a nível dos ossos, porque é um dos locais para onde o cancro metastiza”, afirma. Existem tumores “mais agressivos do que o cancro da mama, com resultados muito piores” mas a verdade é que a incidência deste cancro “está a aumentar. Tem um índice de sobrevida grande, principalmente quando é detectado na fase inicial, a maioria das nossas doentes estão bem. A incidência está a aumentar mas a mortalidade está a diminuir”, sublinha Teresa Santos.
A médica acredita que estes dados em muito se devem aos rastreios. “O rastreio diminuiu muito a mortalidade porque nos permitiu tratar mais precocemente a doença. É feito com dinheiros públicos, descentralizado e dirige-se às mulheres sem sintomas, que recebem carta para irem fazer exame”, afirma, revelando que existem estudos que ainda questionam a pertinência dos rastreios uma vez que “chamam-se muitas mulheres para fazer exame e depois não têm nada e dizem que estamos a criar ansiedade nelas. Mas para aquelas que achavam que não tinham nada e depois é descoberto um tumor na fase inicial é óptimo. Vale a pena as mulheres irem ao rastreio, funciona muito bem em Portugal. O rastreio é a partir dos 50 anos mas acho importante a partir dos 40 anos as mulheres terem a iniciativa de irem ao médico e pedir para fazer exames”, afirma.
“Todas as pessoas têm mais capacidade para resistir a coisas menos boas na sua vida do que aquilo que acham que têm”
A atenção aos sinais de alerta é essencial. “Estejam atentas e procurem o médico cedo. Presença de nódulos, retrações ou alterações do contorno mamário ou da pele da mama, mamilo invertido, corrimento mamilar, sangue, inflamações da mama, mama aumentada, quente, com rubor, encarnada, pele casca de laranja. A maior parte das vezes não é cancro, mas quando o aparecimento é súbito, temos de despistar”, diz, revelando que “o cancro da mama ainda causa bastante receio. As pessoas que nos procuram são pessoas muito fragilizadas, tem de haver da nossa parte grande disponibilidade, querem ser tratadas o mais rápido possível, não têm a calma necessária para perceberem que temos de fazer exames, saber o máximo sobre aquele tumor para poder trata-lo bem. O facto de atrasar 15 dias ou 1 mês não altera nada se isso implicar ter mais conhecimento e depois tratar melhor”, salienta.
E quando o tumor é tratado mas volta? “Não temos uma percentagem muito alta de reincidências”, começa por dizer Teresa Santos, revelando que “as pessoas vão buscar forças que nem sabem que têm. Todas as pessoas têm mais capacidade para resistir a coisas menos boas na sua vida do que aquilo que acham que têm. As pessoas pensam que não vão aguentar mas aguentam, levantam-se novamente e é sempre esse espírito de sobrevivência para remover o que não é bom”, refere, lembrando que não são só as mulheres a sofrer de cancro da mama, embora a balança esteja claramente em seu favor. “[No que toca ao cancro da mama nos homens], a percentagem é cerca de 1%, bastante mais diminuto”, refere.
“Fiquei em pânico”
São muitas as mulheres que partilharam connosco a sua história com o cancro d mama. Uma delas, a cantora Rebeca, que voltou a cair nas mãos do cancro depois de um difícil cancro da tiróide alguns anos antes. “Eu estava de férias e senti no peito um nódulo, uma bola, que achava que não fazia parte do corpo, bastante duro, mas que não doía. Fiquei em pânico, já tinha tido um cancro da tiróide aos 29 anos e enviei logo mensagem ao meu médico. Fiz exames e disseram-me que tinha cancro de mama. Não queria acreditar que estava novamente doente”, lembra. Já não caiu em depressão, como da primeira vez em que enfrentou o cancro, mas a luta que ia travar seria bastante dura. “Levar novamente com cancro, ainda por cima um dos mais agressivos da mama, com proliferação de 80%… Há uns anos, uma mulher que tivesse um cancro como o meu, HER2+, não tinha hipótese de sobreviver”, refere Rebeca, que procurou saber o máximo de informação sobre cancro, um costume que tem desde a sua juventude. “Já com 16 anos, eu lia muito sobre cancro, tinha livros sobre saúde e o meu livro de ir para a praia era sobre cancro, estava sempre muito preocupada, com medo de ter. Sempre tive muito medo das doenças e de morrer”, confessa.
O corpo ficou bastante afectado. “A cirurgia foi complicada, passei por 16 rondas de quimioterapia, caiu o cabelo, fiquei com bocados de cabelo na mão, sem pestanas, sem sobrancelhas, muito gordinha, tinha vergonha do meu marido, do meu filho, quando eles chegavam punha o carapuço, tentava vestir e despir sem que vissem o meu corpo, mesmo que me dissessem que estava bonita, que era uma fase, que ia passar. Mais 20 rondas de radioterapia, 18 de imunoterapia e agora estou a fazer um tratamento, durante 10 anos, de hormonoterapia, uma menopausa forçada que não é fácil. Mas farei o que for necessário para que possa continuar a criar o meu filho e estar com a minha família, amigos e fãs que me ajudaram muito”, conta a cantora, salientando a importância de “ver a luz ao fundo do túnel, manter a fé” e sobretudo estar sempre alerta. “O rastreio é muito importante, fazer exames, ir a tempo, se chegar a tempo é bem mais fácil de tratar”, frisa.
Falar do cancro sem medos nem tabus
Como ela, as sobreviventes oncológicas Ana Ervedoso, Dulce França Guerreio e Sílvia Sampaio, todas descobriram um nódulo durante a apalpação mamária. “Fiz a apalpação e definitivamente tinha alguma coisa que me fez estremecer. Tive um ataque de choro, foi como se já soubesse que era cancro”, diz Sílvia Sampaio. O mesmo pensamento passou pela cabeça de Ana Ervedoso que há pouco tinha passado pelo mesmo mas no papel de cuidadora. “A minha mãe, em 2016, tinha iniciado tratamentos oncológicos devido a um carcinoma na mama, então o meu primeiro pensamento foi “Isto deve ser cancro!”, conta. Para todas, o medo passou a ser um sentimento sempre presente. “Eu tinha perdido o meu único irmão, cinco anos antes, para o cancro. Foi inevitável sentir medo que me acontecesse o mesmo…”, revela Dulce França Guerreiro.
Encontraram força em manter um espírito positivo. “Sempre fui uma pessoa muito positiva, alegre e feliz e penso que a força veio sobretudo daí, por optar ver sempre o copo “meio cheio” e por acreditar que os dias mais dolorosos também passam. Tenho a certeza que este constante acreditar e o foco que mantive nas coisas boas ao meu redor foram essenciais para passar por este processo tão longo e difícil”, conta Ana Ervedoso, acrescentando que “optou por manter a mente ocupada” com leituras de livros sobre desenvolvimento pessoal e a prática de meditação. “E acabei por escrever um livro infantil de poesia, ‘O Sorriso da Mamã’, lançado no dia 26 de Junho, para abordar a temática do cancro em contexto escolar”, refere. Já Dulce França Guerreiro encontrou no Tik Tok uma tábua de salvação, que mais tarde daria origem à página ‘Boobs Cancer My Journey’. “Senti necessidade de ocupar o meu tempo com algo que me fizesse sentir bem. Encontrei no Tik Tok a minha terapia, ocupava-me a fazer vídeos, a maioria deles cómicos. Fiz vídeos quando comecei a quimioterapia, quando rapei o cabelo, quando fiz a cirurgia, a radioterapia, e continuo a fazer sobre temas que envolvem o cancro. A determinada altura, pensei que poderia criar uma página de Instagram onde mostraria a forma como lidei com a doença, como foi a minha recuperação e como está a ser a minha vida enquanto sobrevivente do cancro para dar esperança e um contributo a quem esteja agora a receber o seu diagnóstico”, explica.
“Tenho a certeza que este constante acreditar e o foco que mantive nas coisas boas ao meu redor, foram essenciais para passar por este processo tão longo e difícil”
O que mudou com o cancro? “O cancro ensinou-me a priorizar e a relativizar as situações e as pessoas. Aprendi que nem tudo é importante, nem tudo é urgente. Nem tudo, nem todos”, garante Ana Ervedoso. “Eu tenho de estar bem comigo para conseguir dar mais aos outros. Fui buscar força a mim mesma e à minha vontade imensa de viver. Casada e com três filhos, eu sabia que tinha de ficar bem para poder continuar a cuidar de todos”, refere, por sua vez, Dulce França Guerreiro, que salienta a importância de “uma boa alimentação, hidratação, descansar quando o corpo pede e manter uma actividade que se goste e se consiga fazer”, além do fundamental, “acreditar em si próprio e confiar nos médicos”. Já Sílvia Sampaio afirma que “o cancro a ensinou a viver sempre o momento e a valorizar as pequenas coisas. O que dantes era um problema agora é apenas um pormenor. O melhor conselho que poderei dar é que se rodeiem de amor, que acreditem que a cura é possível e sejam sempre positivas. Com estes ingredientes acreditem que a caminhada do cancro se torna mais leve”, afirma. Há uma comunidade muito forte a apoiar. “A curiosidade fez-me tentar conhecer pessoas que estavam a passar pelo mesmo e encontrei grupos de doentes oncológicos que me ajudaram a ultrapassar o cancro. Não devemos ter medo da palavra cancro, mas sim falar dele abertamente e sem tabus”, diz.
Os efeitos da radioterapia e hormoterapia
Dois casos diferentes são os de Susana Leitão e Raquel Rocha. A primeira, médica ginecologista no Hospital S. Sebastião, também sentiu um quisto mamário na apalpação, mas quando foi fazer exames, a técnica indicou que aquele quisto não era o problema, mas outro, indetectável na apalpação, presente na mama oposta. Confirmado o diagnóstico de cancro da mama, avançou para “cirurgia conservadora” para remover o “carcinoma invasor”. O pior foi “a espera pelo “resultado definitivo da análise ao tumor. Fiquei com muita ansiedade porque de acordo com o resultado dessa análise é que se decidiriam os tratamentos adicionais e esse tempo de espera foi o que mais me custou. O resultado acabaria por vir negativo, o risco de recidiva era baixo, não se justificaria fazer quimioterapia, então fiz só radioterapia”, conta. Um tratamento que lhe “inflamou ligeiramente a pele” e a obrigou a “adaptar a forma de vestir. Além de não poder apanhar sol, tinha de ter sempre uma t-shirt de algodão branca debaixo da roupa porque o único tecido que pode estar em contacto com mama irradiada tem de ser 100% algodão e sem cor”, refere.
No início, preocupava-a a diferença que ficaria de uma mama para a outra, “as primeiras vezes que olhava ao espelho valorizava a diferença”, e houve uma “crise de choro” junto com as colegas quando “caiu a ficha”. No entanto, Susana Leitão agarrou-se sempre à “racionalização dos factos: há tratamento, hoje em dia o cancro da mama está muito estudado, não se morre de cancro da mama facilmente, o nódulo é pequeno… Racionalizava assim embora fosse difícil abstrair-me do facto que tinha uma doença potencialmente grave. A maior parte das mulheres vive com cancro da mama mas não morre de cancro da mama”, afirma. Agora que se encontra em remissão, está a fazer hormonoterapia. “Interfere com o estado de espírito e o humor, faz saltar a tampa mais rápido, provoca alterações hormonais próprias da menopausa, mexe comigo”, diz, lembrando o quanto custou “reiniciar o trabalho” e as mudanças que fez em termos de carga horária. “É um susto e aprende-se a valorizar mais a vida”, salienta.
“O cancro não dá nada a ninguém, só tira”
Raquel Rocha é a mulher que dá o rosto a esta reportagem. Diagnosticada a 19 de Outubro de 2019, “já tinha passado da data” habitual em que costumava fazer exames. “Em Março, tinha dores na mama, fui fazer exames e quem me fez os exames disse que não era nada, desvalorizou por causa da minha idade, eu tinha 32 anos. Em Outubro, quando fiz novos exames, viram os anteriores e perceberam que já lá estava”, conta. Sem lhe terem dado o diagnóstico, acabaria por sabê-lo pelo médico que lhe fez a biopsia. “Quando estou a fazer a biopsia, a minha irmã foi comigo e estávamos as duas bem-dispostas a conversar e o médico parou e perguntou “Raquel, alguém lhe explicou porque é que está aqui?”. Eu disse que era para saber o que tinha e ele respondeu “Não, minha querida, é para saber que tipo de cancro tem porque tem cancro da mama”. A partir daí, foi tudo muito rápido”, lembra.
Inicialmente pretendiam apenas “retirar o tumor, possivelmente fazer o esvaziamento axilar, porque já havia a confirmação que os gânglios também estariam afectados”. Uma semana antes da cirurgia, teve a notícia que “iriam tirar a mama e não conseguiriam fazer reconstrução” e Raquel “desabou. “Soube por telefone porque estávamos em tempos de Covid. Não conseguia imaginar o aspecto, como ia ficar, então procurei as piores imagens na Internet e mentalizei-me que era assim que ia ficar. Mal saí do bloco de operatório, pedi para ver, não me queriam deixar mas eu insisti e quando olhei, não achei nada de especial, estava um trabalho bonito. Tinha-me preparado para o pior”, diz, confessando que “foi um misto de sensações. Não digo que gostei do aspecto, não deixa de ser uma parte que deixou de estar, mas aquele alívio de “a mama não está mas também não está aquilo que estava aqui a doer” ajudou a ultrapassar”, conta.
“O cancro não dá nada a ninguém, só tira. Somos nós que perante um diagnóstico transformamos a nossa vida, não é a doença”
Todas as etapas do processo “trazem desafios diferentes. No caso da quimioterapia, a nível de aspecto físico fez-me imensa confusão não ter sobrancelhas nem pestanas e ter aquela cor de doente que não dá para disfarçar. O pós-cirurgia foi difícil não só por causa da mama mas por causa das limitações com que eu fiquei a nível do braço. A radioterapia queimou-me totalmente a pele e na hormonoterapia fiquei com a menopausa com 32 anos e foi complicado lidar com os calores”, lembra. Onde se vai buscar forças? “A muitos lados, muito vem de nós, sempre fui teimosa, obrigava-me a sair de casa todos os dias, a maquilhar-me todos os dias. E o meu sobrinho, que na altura tinha 1 ano, foi aquele raio de sol que não me deixava sozinha”, diz, atirando: “Toda a gente tem consciência da morte mas quando nos dão um diagnóstico destes, percebemos que se calhar o fim está mais perto do que aquilo que alguma vez pensamos. Não começamos a ver a vida de forma diferente, apenas damos mais valor àquilo que temos, apreciamos mais. Quem nunca passou por isto, nunca vai compreender”.
Raquel Rocha faz questão de salientar que “o cancro não dá nada a ninguém, só tira, tira milhares de vidas por ano. Somos nós que perante um diagnóstico transformamos a nossa vida, não é a doença. Nem é justo para todos aqueles que já partiram e que não conseguiram ter um final feliz. Eu sou uma sobrevivente oncológica, não ganhei luta nenhuma, até porque esta seria uma luta muito desleal, em que partimos para ela sem qualquer vantagem. Mesmo um sobrevivente em remissão não tem qualquer garantia de que o cancro não vai voltar”, diz, apelando à “abertura de portas” no diálogo sobre o cancro. “Nenhuma de nós tem culpa da forma que o nosso corpo agora tem, não pedimos para estar assim, não temos de ser tratadas de forma diferente de outra mulher”, refere. As mulheres que passam por isto, garante, “não estão sozinhas, podem sempre encontrar apoio na página ‘Não Tenho Mama e Agora‘, criada por Raquel Rocha, ou em tantas outras que falam sobre a doença. “Existe uma comunidade forte, no caso do cancro da mama nas mulheres, que se entreajudam umas às outras. Há sempre alguém para ajudar”, afirma.
Apoio à distância de um telefonema ou de um clique
Há muitas entidades que prestam apoio a doentes oncológicos. A Liga Portuguesa Contra o Cancro disponibiliza uma linha telefónica – 808 255 255 – para “informar e apoiar a pessoa com cancro e sua família e amigos em aspectos que digam respeito à doença, associações, direitos e instituições e centros de tratamento”. Específica para o cancro da mama, a instituição sem fins lucrativos Mama Help tem como missão “a melhoria da qualidade de vida de doentes com cancro da mama, seus familiares e amigos”, facilitando “o esclarecimento e acompanhamento qualificado” através de “um centro de referência na orientação e realização de aconselhamento não médico, baseado nos fundamentos da terapia convencional e de terapias complementares, aplicando o conceito de medicina integrativa”. A instituição promove, ainda, “de forma periódica, sessões de esclarecimento abertas e gratuitas, com diversos profissionais, sobre os mais variados tópicos associados ao tema cancro da mama, bem como disponibiliza, nas várias plataformas de comunicação de que dispõe, informação sempre actualizada sobre a matéria”.
A nível internacional, duas plataformas recentes abordam a temática do cancro. A plataforma My Alula, fundada pela sobrevivente oncológica Liya Shuster-Bier, começou por ser apenas uma lista das coisas que ela precisou quando estava doente. “Fundei a Alula depois de cinco anos de uma experiência pessoal dolorosa com o cancro. Primeiro, como cuidadora, depois como doente e agora como sobrevivente. Até passarmos por isso, não temos ideia do que esperar, perguntar e precisamos de ajuda. A Alula é o que gostava de ter tido quando estava doente”, diz, na página. Num conceito semelhante, a C-List, fundada pela sobrevivente de cancro da mama Helen Addis, em conjunto com a amiga e especialista em beleza Lisa Potter-Dixon, descreve-se como “o melhor guia de produtos de beleza que se podem usar quando se está a passar por tratamentos para o cancro. Quando estava a fazer tratamento para o cancro, todos os produtos – desde a pasta dos doentes à escova, às luvas esfoliantes, cremes hidratantes, champôs, desodorizantes e escovas do cabelo – precisavam de ser apropriados, suaves e sem fragâncias, porque a pele fica muito sensível”, diz Helen Addis, na página, contando que foi assim que surgiu a ideia da C-List, de promover produtos “cancer kinder” para as pessoas em tratamentos.
E para quando uma cura para o cancro? As notícias mais recentes são animadoras. A farmacêutica alemã BioNTech, responsável pela vacina Pfizer contra a Covid-19, anunciou em Junho que a vacina experimental contra o cancro já foi administrada aos primeiros doentes. A vacina BNT111 utiliza a mesma tecnologia das vacinas contra a Covid-19 (mRNA), em que um fragmento do código genético do vírus transporta instruções para o organismo humano conseguir desenvolver anticorpos específicos. A vacina BNT111 encontra-se na fase 2 dos ensaios clínicos, tendo sido administrada a 120 doentes com cancro de pele. “A nossa visão consiste em aproveitar o poder do sistema imunitário contra o cancro e as doenças infecciosas. Conseguimos demonstrar o potencial das vacinas mRNA contra a Covid-19 e não nos podemos esquecer que o cancro também é uma ameaça à saúde global, ainda maior do que a pandemia actual”, diz a co-fundadora da BioNTech, Özlem Türeci, na página da farmacêutica, acrescentando que a vacina BNT111 “já demostrou um perfil de segurança favorável e resultados preliminares encorajadores numa avaliação clínica inicial. Com o início do tratamento de doentes na Fase 2, sentimo-nos motivados para continuar no nosso caminho de descobrir o potencial das vacinas MRNA para os doentes com cancro”.
“Se não tivesse encontrado a alegria, a força de vontade e o humor não creio que tivesse suportado tanta perda”
Marine Antunes, 31 anos, sobrevivente oncológica, apaixonada por humor e por comunicar, percebeu desde cedo que queria quebrar tabus sobre o cancro. Criou inúmeras iniciativas, escreveu livros, deu palestras e continua a ajudar os que, como ela, tratam o cancro por tu. Fundadora da associação Humor Relevante, que procura minimizar o impacto das doenças crónicas, e autora do projecto Cancro com Humor, diz que “era urgente partilhar uma história de superação usando o humor como ferramenta”.
Como surge o Cancro com Humor?
Quando fui diagnosticada com cancro aos 13 anos, foi o humor que me ajudou a tornar tempos tão duros em vivências melhores. E foi isso que quis fazer com o Cancro com Humor, quis ser aquela pessoa que fala de cancro, que conta a sua história e que arranca sorrisos e esperança. Quis que outros doentes deixassem de se sentir tão sozinhos. Quis dar-lhes voz, falar de cancro sem medo sem tabus, sem dramatismo, sem vitimização. Subir ao palco e fazer rir ao mesmo tempo que se educa uma plateia inteira.
O humor é uma arma contra o cancro?
Se não tivesse encontrado a alegria, a força de vontade e esse humor na minha essência também não creio que tivesse suportado tanta perda, tanta mudança. O humor tornou-me num ser humano esperançoso, corajoso.
De que forma promove a desmistificação de tabus?
Não estamos habituados a ver entrevistas em que o doente oncológico conta a sua história sem aquela música triste de fundo. Nas palestras, a história é partilhada de forma leve e os temas cruciais ao mundo do cancro são abordados sem medo nem paninhos quentes. Tenho dois projectos que promovem desmistificação: o Manual para Descomplicar o Cancro, vídeos em que falo de temas comuns do mundo oncológico – como a perda de cabelo, a mudança de humor, as visitas inesperadas, etc.; e o programa Na minha Pele, em que converso com pessoas que de alguma forma estão ligadas ao cancro. Ambos estão disponíveis no YouTube.
O que as pessoas não sabem sobre o cancro?
As pessoas ainda não sabem que se pode ser feliz e bem resolvido mesmo com este diagnóstico. Ainda se associa a felicidade a leviandade, como se por estar doente não se pudesse ter sonhos.
Como é que substituir o discurso “Porquê eu?” por “O que posso aprender com isto?” empodera?
Empodera e salva. A mim salvou-me. Se eu tivesse feito a primeira pergunta, além de ter sofrido horrores, ter-me-ia tornado numa miúda azeda e zangada. Além disso, nunca teria resposta. O cancro não escolhe. Acontece.
Quais considera serem as principais premissas para “Descomplicar o Cancro”?
Para mim, na base, estará sempre a aceitação. Perder tempo e energia a zangar-me com o diagnóstico? Nem pensar. Saber rir de mim mesma, das situações caricatas, do próprio desconforto, dos comentários ridículos. E, no topo do bolo, tem de existir a relativização (aprendi a não me chatear com o que não posso mudar) e a gratidão, agradecer tudo o que existe de bom na minha vida.
O que é a “culpa de sobrevivente”?
Quando conheces muita gente com cancro e os teus tratamentos correm bem mas os dos outros não, é normal sentires-te inibido, quase como se não fosse justo festejar. Mas não tenho culpa da doença nem da cura. Precisei de aceitar ambas.
Depois do cancro, as vitórias celebram-se com mais fervor?
Sem dúvida. Sempre amei celebrar, mas depois do cancro tornou-se mantra. Não deixo sonhos por realizar. Não faço planos, todos os dias têm de ser especiais. Todos os dias são dias para celebrar. Amo com tudo, digo às minhas pessoas que gosto delas, não faço fretes, não vivo a vida que os outros querem. Vivo e faço do meu tempo o que quero.
A hipersensibilidade que se desenvolve envolve o “medo” que o cancro volte?
Sim. Sou ansiosa o quanto baste e tem muito a ver com o medo de falta de tempo, a pressa de viver que também pode ser angustiante. Tenho trabalhado esta questão de viver no presente com serenidade.
Humor significa “vontade de ser feliz?”
Sem dúvida. O humor é a nossa alavanca. O humor é a vontade imensa de viver com alegria, desapego, leveza. O humor traz saúde, vida. Tudo o que faço tem a mesma missão: tornar a vida um bocadinho mais fácil a quem dói mais.
OncoWeek, uma semana para o
autocuidado e convívio
Uma ideia da sobrevivente oncológica Carina Mendes que, com o apoio da Revista Cuidar, da Uriage e do Hotel Talaso Atlántico, organizou uma semana recheada de actividades de bem-estar e partilha para 14 mulheres com histórias ligadas ao cancro. A primeira OncoWeek decorreu em Maio e o evento não vai parar por aqui.
Carina Mendes, 33 anos, é uma sobrevivente de dois cancros – colo do útero e mama – que está em remissão desde 2019. Através da sua página ‘Carina Depois do Cancro‘, já ajudou um leque vasto de mulheres que passaram pelo “choque enorme” de receber este diagnóstico. Na luta que travou, foi buscar forças ao filho recém-nascido e nunca desistiu, mesmo naquelas alturas em que pensava que “não aguentaria mais. Via a tristeza e a preocupação nos olhos da minha família mas continuava a sorrir e a dizer que estava tudo bem, mesmo quando estava saturada de tudo”, conta.
Na sua comunidade on-line, criou “amizades fantásticas. É realmente emocionante saber que consigo dar alento a pessoas que estão a passar pelo que eu passei, tornou-se a minha missão. Ao mesmo tempo, ajuda-me a lidar com a fase de remissão que também não é fácil”, revela. O cancro ensinou-a a “relativizar e a priorizar. Só sabemos que estamos bem e felizes quando passamos por algo muito difícil e que nos ameaça a vida”, diz, tendo começado a “dar mais valor a si própria e ao seu meu bem-estar”. O primeiro passo na luta contra o cancro é “aceitar, o que nem sempre é fácil pois a tendência é para nos revoltarmos e questionarmos o porquê. Temos que aceitar, por mais injusto e triste que seja. Aceitar dá-nos o poder de arranjar forças que nem sabíamos que tínhamos e conseguir lidar com o obstáculo. Por fim, sorrir, fazer o que mais gostamos, não deixar que nada nos limite”, afirma.
E assim surge a OncoWeek, uma ideia que nasceu em Fevereiro numa conversa com a directora da Revista Cuidar, Catarina Malheiro, e que se transformou numa semana, realizada em Maio, recheada de actividades de bem-estar e convívio para 14 mulheres doentes e sobreviventes oncológicas. O local? O Hotel Talaso Atlántico, em Espanha, que inclui um centro de talassoterapia com tratamentos para doentes oncológicos. “O sonho era criar um evento que reunisse doentes e sobreviventes oncológicos para partilha de experiências e apoio e aquele hotel seria fantástico. Quando demos por nós, tínhamos já estadia marcada no hotel para a primeira semana de Maio”, lembra. Houve sessão fotográfica, workshops de cuidados da pele, seminário sobre talassoterapia e “muitos momentos de partilha e diversão” numa semana que “deu voz ao cancro e inspirou todos aqueles que mais precisam”. A ideia é continuar com o evento anualmente, no mesmo local, para que a partilha entre doentes e sobreviventes possa continuar, fomentando “o bem-estar, cuidado e auto-estima”.
Sugestões
Para acompanhar
Sexo e a Cidade
Uma das séries mais conhecidas da televisão, Sexo e a Cidade, abordou a problemática do cancro da mama através da personagem Samantha, que enfrentou o problema apoiando-se nas amigas e no namorado, fazendo uso dos acessórios mais extravagantes para alimentar a auto-estima e sendo sincera em relação às emoções que a envolviam.
Para ler
Também Há Finais Felizes, Fernanda Serrano
No dia do nascimento do segundo filho, Fernanda Serrano tocou no peito e sentiu um caroço. O obstetra garantiu que não era nada mas mais tarde conclui-se que era cancro e muito agressivo. A actriz conta neste livro toda a sua jornada com a doença, a maternidade e o regresso posterior aos palcos e à televisão.
Para ver
A Culpa é das Estrelas
Baseado no livro homónimo de John Greene, ‘A Culpa é das Estrelas’ conta a história de Hazel Grace Lancaster e Augustus Waters, dois adolescentes que se conhecem em um grupo de apoio para pacientes com cancro e se apaixonam um pelo outro, vivendo uma aventura inesquecível no tempo que lhes resta.
Para ouvir
Clouds de Zach Sobiech
Zachary Sobiech foi um músico norte-americano que morreu de cancro em 2013. Dias antes, compôs esta canção referente à doença que, segundo ele, “se destinava a fazer as pessoas felizes”.