Por entre muita gente apressada a sair daquele comboio Alfa, na Estação de Campanhã (Porto), no início da noite de 6 de Outubro de 2021, o meu cão desce da carruagem 4, aguarda no cais, eu sigo-o, sento-me ali no chão e abraço o cachorro. “Zangão, conseguimos! Esta experiência, que acaba de se transformar em memórias, já ninguém nos tira!”, disse ao meu amigo.
Sim, eu tinha acabado de chegar com o meu cão-guia de uma viagem solitária, que tinha começado ali mesmo, naquele lugar, 24 dias antes, num velho comboio Celta, rumo a Vigo, fazendo posteriormente o percurso para Madrid, Barcelona, Paris, Roma e Vaticano, Berlim, Estocolmo, Oslo, Bruxelas, e de novo Madrid, Lisboa e finalmente o regresso a casa.


Como surgiu a ideia? Eu fiquei cego em 2015, no decurso de uma crise de glaucoma que me levou a percorrer ao longo desse mesmo ano um conjunto de intervenções destinadas a reverter o processo, sem resultados. Aprendi rapidamente técnicas de orientação e mobilidade com bengala e, nesse caminho, candidatei-me para receber um cão-guia, numa solução que eu nem sabia bem o que era; nunca tinha visto ou estado com um destes animais. Para mim era como ir à lua. Sabia que existia mas…
Até que numa segunda-feira de Julho de 2017, num dia de imenso calor, com o País ainda em choque, meio incrédulo, com a tragédia de Pedrógão a acontecer, parto rumo a Mortágua para iniciar uma de duas semanas de estágio em que iria aprender os comandos e criar conexão com um cachorro que, correndo bem, iria ser o meu guia nos anos seguintes das nossas vidas.
Sabia lá eu que estava a caminho de um lugar, de uma etapa, de uma realidade que, literalmente, iria transformar a minha vida! De repente, quase meio inconsciente, essa mesma vida, que tinha ido por ali abaixo a alta velocidade, que tinha batido com estrondo no fundo, iniciava uma subida, ainda mais rápida, rumo a um futuro incrível de transformação pessoal, profissional, de relações, que eu nem imaginava ser possível.
A propósito de compromissos profissionais, ou fins-de-semana, ou acasos, comecei a viajar, agora sozinho, num processo de coragem, mais competências, mais experiências, que vão gerando resultados e reforçando a confiança. Um percurso de transformações e muita introspeção pessoal, sempre inspirado pelo meu cão-guia Zangão, que culminou na decisão de encerrar uma empresa com quase 20 anos de consultoria financeira e fiscal e abraçar novos sonhos.


Estava com todos estes pensamentos a fervilharem na mente, a meio de mais um fim-de-semana em Portimão, quando se deu o clique: A independência, liberdade, segurança, capacidade de socialização proporcionados por um cão-guia a uma pessoa invisual é tão incrível que não pode ser comunicada de outra forma que não seja “Vai lá e faz”, mostrar na prática! Mas como? Com algo que nunca ninguém tenha feito: fazendo sozinho, apenas com o meu cão-guia Zangão, uma viagem de comboio pela Europa! Apenas com um plano de viagens e alojamentos, sem ninguém à minha espera em lado algum, em cidades onde nunca tinha estado, algumas sem sequer falar a língua. Vieram os conselhos para não arriscar, as barreiras das línguas, o desconhecimento dos espaços, os acessos do meu cão, os comboios, os aviões, os hotéis, o trânsito, e depois a Covid-19 que atrasou sonho. No meio de tudo isto, editei o meu livro ‘Nasci de Novo – Como o meu cão-guia Zangão transformou a minha vida’.
Faltava cerca de um mês para partir para Vigo na primeira etapa, estava eu em casa a pensar no que me tinha metido, quando recebo um e-mail da Casa Pontifícia do Vaticano a comunicar que a audiência com o Papa Francisco que eu tinha solicitado estava agendada para as 9h30 de 22 de Setembro. Quando submeti o pedido, fi-lo sem expectativas, pensando que não teria resposta, mas visualizei sempre uma viagem de interações e brincadeiras de todos com o meu cão, de conhecer pessoas, de passear por Vigo, de subir as Ramblas até à Praça da Catalunha, de tirar fotografias junto à Torre Eiffel, de vaguear pelo espaço do Coliseu de Roma, de me emocionar com o Papa Francisco a abençoar o meu cão, de me emocionar novamente junto ao Memorial do Muro de Berlim, diante de fotografias de vítimas de fuga para a liberdade, algumas delas crianças, de caminhar sozinho com o Zangão pelas ruas de Estocolmo, de sentir os ventos de Oslo, diante da icónica Ópera e de um fiorde da Noruega, de sentir os espaços e transportes de Bruxelas, de visitar museus em Madrid, de não regressar a casa sem um almoço agradável em Lisboa e… Aconteceu tudo isto e, claro, muito mais. Conheci muitas pessoas com quem nos cruzávamos, nos comboios, nos aeroportos, nas ruas, nos hotéis; uma palavra para tudo isto poderia ser… “empatia”!
Gratidão para quem, sem o qual, nada seria possível: o meu cão-guia Zangão, um cão brutal que todos os dias me ensina sobre como surpreender e como entregar aos outros mais que aquilo que esperam de nós.
Jorge Paiva,
Economista