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O ano de 2020 estava a acabar e o director do serviço de doenças infecciosas do Hospital de S. João recebia a melhor notícia possível: seria o primeiro português a ser vacinado no país. Alguns meses depois, António Sarmento recorda toda a batalha contra a Covid-19, desde o primeiro minuto em que ouviu falar do vírus e antecipou a sua chegada a Portugal, fala sobre decidir na incerteza e sobre os vírus que continuarão a aparecer se a sociedade consumista não refrear os seus hábitos e for mais solidária entre si.

António Sarmento conversa com a Magafone na Secção Regional do Norte da Ordem dos Médicos

Quando ouviu falar pela primeira vez no vírus Covid-19?

O serviço que eu dirijo é um dos dois serviços, a nível nacional, a par com o Curry Cabral, em Lisboa, responsável por doenças emergentes, ou seja, este tipo de doença, Covid, Ébola, H1N1. Estamos especialmente vocacionados para estar atentos a estas coisas, portanto mal nós vimos os primeiros casos na China em Janeiro de 2020 tivemos a certeza que ia chegar até nós. Porquê? Além de se perceber que era altamente contagioso, há imensa gente que viaja para a China e imensa gente que viaja da China para o resto do mundo, portanto isto ia ter de chegar cá. Logo em Janeiro, começámos a preparar a organização do serviço para isto, com organigrama, é importantíssimo, em qualquer crise, definir uma cadeia hierárquica, saber quem é responsável pelo quê e quem é o responsável último, é fundamental para a segurança das pessoas. A pior coisa é a indefinição, a coordenação é fundamental. Depois, fizemos Plano de Contingência, que também submetemos ao Conselho de Administração, onde constava o que iríamos fazer em vários cenários possíveis. Sabíamos que o vírus iria chegar cá mas não sabíamos com que proporção e por isso fomos preparando vários passos que contemplassem antecipadamente cada um dos cenários. Felizmente, no meu hospital, nunca fomos apanhados de surpresa. Numa semana, estávamos preparados para que na semana seguinte houvesse um grande aumento de casos e por isso, quando havia um aumento, nunca ficávamos descalços. Isso permitiu-nos algo extraordinariamente importante: nunca se ter gerado o caos. Houve imenso trabalho, muito stress, muita preocupação, mas desorganização, ficarem doentes por tratar, nunca aconteceu. De tal modo preparamos as coisas, que conseguimos ajudar outros hospitais que estavam menis adiantados neste processo cedendo todos os documentos que fomos fazendo: os circuitos dos doentes, os critérios para tratar os doentes em casa, os sinais de alarme, a forma como isolávamos os doentes, tudo foi escrito e regulamentado. Tivemos um papel importante.

Alguma vez imaginou uma pandemia desta magnitude?

Imaginei e imagino outras no futuro. Estão reunidas todas as condições para que elas sejam cada vez mais frequentes. Desde o ano 2000, já tivemos quatro: MERS, SARS, H1N1, Ébola. Porquê? Há muita coisa que está a mudar. As mudanças de clima, por exemplo, fazem com que apareçam doenças em determinadas zonas do mundo onde elas não existiam. Por exemplo, na Madeira, nunca houve dengue e há três, quatro anos houve 2000 casos de dengue num só ano. O clima mudou, as viagens de avião constantes trouxeram o mosquito, emigrantes que vieram infectados, o mosquito deu-se bem com o clima da Madeira, reproduziu-se e infectou mais pessoas. Também já apareceram casos de Malária não importados em Espanha, Itália, Grécia. A economia que temos assenta no crescimento contínuo e isso vai levar a uma depredação total dos nossos recursos. Com alterações no clima, focos de pobreza muito grande, secas em determinadas regiões que levam milhares a emigrar, o número exagerado de viagens desnecessárias que se fazem com os voos low cost, as pessoas passam a vida de um lado para o outro e o mundo não está preparado para isso. Temos de pensar que os vírus e as bactérias são seres vivos que existem na Terra há mais tempo do que nós e vão continuar a existir muito depois da nossa extinção, têm um espírito de sobrevivência muito grande. A nossa sociedade está a tornar-se muito individualista, muito hedonista, está a perder-se aquele espírito de serviço comunitário que ajuda os outros e isso coloca a sociedade em risco. O que é que define uma catástrofe? Haver sempre mais vítimas do que meios necessários para as socorrer. Ou as pessoas vivem numa sociedade solidária, em que estão dispostas a cuidar umas das outras, a ajudarem-se umas às outras ou se nós continuarmos a seguir este rumo individualista, egoísta, ficamos muito vulneráveis. Todos sabemos que a união faz a força e se as pessoas estiverem unidas, solidárias, dispostas a sacrificarem-se pelos outros, têm muito mais probabilidade de vencer uma pandemia, um terramoto, um tsunami do que se cada qual se tentar safar a si próprio.

“A economia que temos assenta no crescimento contínuo e isso vai levar a uma depredação total dos nossos recursos”

Portanto, é toda esta aglomeração de factores que está a contribuir para que estes vírus se vão manifestando?

Sim. Alterações climáticas, poluição, migrações em massa, focos de pobreza, guerras que geram refugiados. O homem com toda a sua presunção e orgulho pateta acha que é o centro do cosmos com as suas armas nucleares, inteligência artificial, mas um pequeno fragmento de um ácido nucleico, que com uma gota de álcool em cima desaparecia num segundo, pôs em pânico toda a humanidade. Devemos aproveitar isto como uma lição para percebermos a nossa fragilidade, não só em relação à Natureza e ao meio ambiente mas também em relação aos outros. As pessoas deviam tornar-se menos arrogantes e mais humildes sabendo que de um momento para o outro podemos ir todos desta para melhor.

As teorias da conspiração sobre a origem do vírus Covid-19 continuam a surgir. Algum dia vamos saber a verdade?

Eu não acredito na fabricação deste vírus em laboratório até porque os Coronavírus existem há muito tempo. Este é um beta coronavírus mas os alfa coronavírus são Coronavírus na mesma que geram as constipações nas crianças. O vírus já existia mas existia de uma forma diferente, não foi uma coisa inventada. Mas podemos olhar para o bom que daqui veio: uma partilha muito grande de conhecimento, com imensas revistas médicas, cujas assinaturas são muito caras, a passarem de imediato a acesso aberto. Foi muito importante para trocar informações. Os cientistas a nível mundial partilharam as descobertas genéticas que iam fazendo em vez de as guardar para depois poderem ser eles os primeiros a patentearem e a ganhar um Prémio Nobel. Agora, a China não é uma sociedade democrática, não é um país transparente e portanto é sempre difícil saber o que se passa na China. Nesses países, nunca sabemos o que é verdade e o que não é.

Esta pandemia é comparável a outras como, por exemplo, a gripe espanhola?

É comparável, mas existem agora mais meios terapêuticos do que na altura da gripe espanhola. A gripe espanhola terá matado 18 milhões de pessoas, nesta morreram 3 milhões, provavelmente não irão morrer muito mais. A outra teve uma proporção maior, mas também havia mais fome, miséria, menos serviços de saúde, mas era muito neste estilo: uma doença respiratória que a muitas pessoas afectava os pulmões e que era altamente contagiosa. Mas, por exemplo, com a SIDA devem ter morrido 40 milhões de pessoas no mundo, é bastante mais. Só que a SIDA assustou muito menos porque rapidamente percebemos a forma de contágio e como podia ser evitada. Aquele medo e pânico no início rapidamente desapareceu.

“Um fragmento pequeno de um ácido nucleico, que com uma gota de álcool em cima desaparecia num segundo, pôs em pânico toda a humanidade. Devemos aproveitar isto como uma lição para percebermos a nossa fragilidade”

Como foi estar na linha da frente, quando isto tudo começou, com tanta incerteza e informações contraditórias?

Nós fomos, e ainda somos, obrigados a decidir na incerteza. Há muita coisa que não se sabia na altura e ainda há muita que não se sabe agora. Não passamos a saber tudo desde Março até agora. Tínhamos de tomar decisões, não podíamos deixar de decidir, sabendo que era sempre numa base de incerteza. Se pegar numas linhas de orientação oficiais americanas, como o CDC, FPA, MMWR, dizem sempre “recomendações interinas”, porque sabem que de um momento para o outro pode mudar. Uma coisa que se recomenda hoje pode não ser recomendada daqui a uns tempos ou pode-se recomendar mesmo o oposto. Tenho muita consideração pela Organização Mundial da Saúde mas em Março, nas suas orientações oficiais, dizia que não devia ser dado o corticoide na pneumonia por SARS-CoV-2 porque nas doenças mais parecidas, MERS e SARS, que são também por Coronavírus, eles não resultaram, inclusive tiveram maus resultados. Depois, em Setembro, fizeram outra recomendação a dizer precisamente o contrário, a dizer que se devia dar, porque depois de decorrerem ensaios clínicos e de se acumular conhecimento, chegou-se à conclusão que afinal era bom. Mas isto é normal numa doença nova e desconhecida, quando há coisas que teoricamente podem ser boas ou más. Vejamos o que se passou com a hidroxicloroquina e outros medicamentos que já existiam, conhecidos, muito seguros, comercializados há 30/40 anos, que faziam sentido sob o ponto de vista teórico e as pessoas foram tentadas a usá-los off label (fora das indicações habituais). O que acabou por se concluir é que nem eram bons nem maus, não faziam nada. Decidir na incerteza acontece muito.

Um dos alertas em relação a este vírus, desde cedo, é que ele não afecta apenas as faixas etárias consideradas mais vulneráveis. Vimos bastantes jovens, aparentemente saudáveis, em situação crítica…

Hoje em dia, infelizmente, vivemos uma epidemia de obesidade. A obesidade já não é uma doença dos países ricos, é uma doença dos países pobres porque a comida calórica é muito mais barata. É muito mais caro dar aos filhos pescada, bacalhau, sardinhas do que ir ao McDonald’s. Neste momento a obesidade é uma doença dos pobres, excepto em zonas restritas do mundo, como a Etiópia e a Somália. Cada vez mais, a pobreza não está circunscrita a regiões do mundo, existe muita pobreza nos países ricos. Há países que aparentemente o PIB aumentou imenso, e pensa-se que estão ricos, mas aumentou para um número muito pequeno de pessoas, portanto aumentou mas não foi repartido. A obesidade é um factor de risco e existe muita gente nova e obesa, e nessas pessoas as complicações da Covid-19 são frequentes e gravíssimas.

“Não há medicamento nenhum, vacina nenhuma, que não tenha efeitos laterais e efeitos fatais. Mas o risco das pessoas não se vacinarem é claramente superior ao risco da vacina. Quanto mais o vírus andar em circulação, mais mutantes vão surgir e um dia pode surgir uma mutante que seja resistente a tudo”

Como foi receber a notícia de que seria o primeiro português a ser vacinado no país?

Felizmente, pela minha forma natural de ser, nem me apercebi. Dois dias antes, o director do Hospital questionou-me se eu não me importava de ser o primeiro a ser vacinado e eu acedi, mas achei que seria o primeiro lá no Hospital, algo que fazia algum sentido porque eu era o responsável por aquele serviço nuclear e era uma forma pedagógica de o resto dos profissionais verem que eu não teria medo da vacina. Eu ia calmíssimo, não perdi um minuto de sono, nem sequer coloquei uma t-shirt. Ia tranquilo, só não fiquei tranquilo quando cheguei e vi o aparato. Nem sabia que ia estar lá a Ministra. Ia para lá achando que era um dia normal, felizmente, senão tinha dormido mal na véspera.

Teve alguma reacção à vacina?

Nada.

Depois de todas as questões que se levantaram face às vacinas, continua a recomendar qualquer uma delas?

Continuo. A comunicação social devia ter sido mais sóbria. Vivemos num mundo em que quando surge uma coisa no meio de muitos milhões, qualquer pessoa acha sempre que pode acontecer a ela. A verdade é que não há medicamento nenhum, vacina nenhuma, que não tenha efeitos laterais e até efeitos fatais. Há pessoas que morrem após a vacina do sarampo. Mas quanto mais isto é divulgado, mais medo gera. Aqueles fenómenos graves de trombose com uma das vacinas estavam calculados em 5 por cada milhão de vacinas administradas. Ou seja, uma por cada 200 mil. Por outro lado, o risco que há se as pessoas não se vacinarem é claramente superior ao risco da vacina. Claro que, em igualdade de circunstâncias, se houver vacinas para todos, se uma tiver 5 num milhão e outra tiver 1 num milhão, devemos preferir aquela que tem 1 num milhão, mas não é esse o caso agora. Estamos a precisar de vacinar as pessoas e de as vacinas urgentemente. Quanto mais o vírus andar em circulação, mais mutantes vão surgir e um dia pode surgir uma mutante que seja resistente a tudo. Se conseguirmos vacinar a população inteira, o vírus deixa de circular.

Começa a falar-se em imunidade grupo, estamos perto disso?

Não sei, porque depende da taxa de transmissibilidade, do vírus, da taxa de imunização natural, da taxa de imunização das vacinas, do ritmo com que a vacina for dada, mas já se notam resultados. Cada vez temos menos doentes com mais de 60 anos porque começam a estar protegidos, é raríssimo receber doentes infectados de lares, tudo isto é um efeito protector da vacina.

Porque é que entre países com condições socioeconómicas semelhantes e que receberam as vacinas na mesma altura, há ritmos diferentes de vacinação?

Tem a ver com a organização, estruturas, para vacinar é preciso haver centros, profissionais, mas nós em Portugal temos uma experiência muitíssimo boa em vacinas. Temos um dos melhores programas de vacinas do mundo e isso deve-se muito à Dra. Graça Feitas que sabe imenso e que teve uma responsabilidade enorme na vacinação, mas as pessoas não percebem. Ao terem os filhos vacinados, eles não tiveram as doenças mas os pais nem se apercebem que não tiveram doenças porque houve alguém a trabalhar activamente para isso. Toda a gente se lembra de nós médicos quando curamos alguém, mas quando evitamos uma doença, ninguém sabe e é importantíssimo evitar doenças.

Neste ano que passou, a atenção esteve mais focada na Covid-19 e menos nas doenças que já existiam. Que consequências é que isto vai ter a médio/longo prazo na saúde dos portugueses?

Tenho alguma dificuldade em responder porque não tenho números. Sei que há pessoas que deviam ter ido ao hospital e não foram por medo, mas também sei que no meu hospital felizmente ninguém ficou por tratar por causa da Covid. Obviamente, numa primeira fase, houve tratamentos que ficaram adiados, aqueles que não eram urgentes. Mas aqueles que precisaram do hospital em determinado momento para serem tratados por outra razão além da Covid, foram tratados. Nesta segunda vaga, isso ainda foi mais premente, continuamos a fazer as cirurgias programadas e ao mesmo tempo a tratar doentes com Covid.

“Se as pessoas estiverem unidas, solidárias, dispostas a sacrificarem-se pelos outros, têm muito mais probabilidade de vencer uma pandemia, um terramoto, um tsunami do que se cada qual se tentar safar a si próprio”

Alguma vez vamos regressar a uma vida pré-Covid?

Não, e quem me dera que não regressemos. Quero que regressemos à normalidade mas tem de ser uma normalidade diferente, mais solidária, em que tenhamos mais presente o interesse comunitário, sejamos menos consumistas, uma normalidade com uma economia muito mais centrada no ser humano e não nos grandes lucros, uma vida mais pacata. Pensar o que é a vida, como dizia o Vinicius de Moraes, a vida é a arte do encontro e as pessoas têm de ir ao encontro umas das outras e pensar que a Natureza nos dá lições. Há 30/40 anos, vimos dois grandes grupos de bactérias: as gram positivas e as gram negativas. As gram positivas são bactérias muito robustas, com uma parede fortíssima, mais de 40 camadas de aminoaçúcares, polissacarídeos, com proteínas, uma armadura forte; os gram negativos têm uma parede com apenas duas camadas. As pessoas achavam, na altura, que o grande problema ia ser com as gram positivo, porque eram mais robustas. O que se veio a verificar, porém, foi o contrário. O grande problema é com as gram negativo porque as gram positivo são muito individualistas, partilham muito pouca informação umas com as autros; enquanto as gram negativo partilham imensa informação. Quando adquirem resistência a um antibiótico, ensinam a outra bactéria, há uma transferência horizontal de um gene. São solidárias entre estirpes, espécies e até entre famílias diferentes. A humanidade tem de ser assim, só sobrevive se as pessoas pensarem que ninguém se salva sozinho. A pessoa pode ser o maior multimilionário do mundo e é tão vulnerável quanto eu ou você, de um dia para o outro desaparece. As pessoas têm de pensar: o que queremos? Queremos muitos bens de consumo, 3 carros, 5 televisões, ou queremos uma vida mais sóbria, com menos bens, 1 carro por família trocar de carro de 10 em 10 anos, não ir todos os anos passar férias ao estrangeiro, e por outro lado ter um sistema de saúde pública mais robusto, um sistema de saúde que nos garanta assistência médica, uma boa rede de saúde pública, de hospitais, de centros de saúde, a certeza que na velhice não terão dificuldade em comprar remédios, em ficarem internados num hospital, em terem uma unidade de cuidados continuados? É preciso reflectir.

António Sarmento, director do serviço de doenças infecciosas do Hospital de S. João, Porto

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