Margarida Bento é actriz e fundadora da companhia de teatro Marias Catrapumbas. A viver em Oeiras com o marido Artur e os dois filhos Laura e Daniel, fala sem pudores da angústia e falta de apoio no pós-parto, do amor incondicional que não foi imediato e da liberdade que se perde para sempre quando chegam as crianças. Um filho é um teste à relação e é, sobretudo, um renascimento da mulher que se reconstrói depois de ter um bebé.
Não cresceu a pensar que gostaria de ser mãe, foi algo que aconteceu naturalmente a partir do momento em que conheceu o marido, Artur Poluektov. “Começámos a tentar e foi muito rápido. Tentámos durante o mês de Abril e soube no início de Maio que estava grávida”, conta Margarida Bento, actriz e fundadora da companhia Marias Catrapumbas. A felicidade foi instantânea e lembra-se que nem esperou para fazer o teste no dia seguinte em jejum, fê-lo assim que chegou a casa e mal o resultado saiu positivo festejou logo com o cão Tommy. “Gritava para o Tommy “estou grávida”! Chorava e ria ao mesmo tempo e estava desejosa de contar ao meu marido. Queria ligar mas é algo que se conta pessoalmente. Quando ele chegou a casa, disse-lhe “tenho uma novidade para te contar” e ele adivinhou logo”, revela. O indicado é esperar até ao terceiro mês para espalhar a notícia mas Margarida Bento “não aguentou. Fui contando e antes dos três meses já toda a gente sabia”, diz.
A gravidez foi bastante tranquila, sem enjoos nem mau-estar, mas com um aumento de peso de 30 quilos. “Pensava que podia comer tudo porque estava grávida, perdi a consciência do corpo, achava que ia tudo para a barriga, mas não. Só queria comer doces e hoje a minha filha é viciada em açúcar, fiz mal”, confessa. Lembra com carinho, contudo, como se sentia “feliz e cheia de esperança” porque “ia nascer como mãe. Ainda fui sair à noite na véspera de ela nascer, fomos jantar a casa de uns amigos. Nessa tarde, tinha ido à obstetra e ela disse-me que a Larua não ia nascer no dia seguinte porque o meu colo do útero estava muito fechado. Eu estava muito pesada, já não estava confortável, só estava mesmo à espera que ela nascesse, então lembro-me de dizer a toda a gente “vai nascer amanhã” e a verdade é que nasceu. Comecei com contracções às 4h/5h e acordei o Artur, que estava cheio de medo”, recorda.
Pós-parto foi “um filme de terror”
Durante o parto não sentiu nada porque “a epidural abafou” mas o pior veio depois. “Foi um filme de terror. Mal ela nasce, põem-na a mamar e parecia que me estavam a espetar agulhas, foi horrível, nunca senti tantas dores na minha vida. Comecei aos gritos e em vez de me sentir apoiada por parte das enfermeiras, começaram a dizer “oh mãe, se é para gritar desta maneira mais vale desistir já”. Diziam-me coisas diferentes, uma deu-me bicos de silicone para não doer tanto, aquilo feriu o mamilo, quando a outra viu começou a gritar “O que está a fazer com bicos de silicone? Quem lhe deu isto?”. Estamos muito fragilizadas, principalmente quando é o primeiro filho, não estamos preparadas. Se as pessoas têm medo do parto, não imaginam o que vem a seguir”, conta. É tudo uma novidade, as cólicas do bebé, os pontos que não lhe permitiram sentar durante um mês. “Andava sempre com gelo para trás e para a frente. Fiquei com a vagina completamente destruída, tive de fazer fisioterapia porque tossia e urinava ao mesmo tempo. O corpo muda. Para além de me olhar ao espelho e não reconhecer quem era”, revela, lembrando um episódio marcante: “Passados cinco dias de ter tido a Laura, fui aos CTT e vi-me no reflexo de uma montra e pensei “coitada, aquela mulher é muito gorda” e aquela mulher era eu. Tive um ataque de choro, pensava “não pode ser, como é que me esqueci de mim e cheguei a este ponto?” Antes de ser mãe emagrecia num instante, a partir do momento em que fui mãe, para emagrecer 1kg era muito complicado”.
A própria relação com a filha, Laura, foi difícil nos primeiros três meses. “A Laura nasceu às 17h30 e quando o Artur à noite adormeceu ao meu lado no quarto do hospital, eu tive um ataque de choro, pânico total, a pensar “eu não vou conseguir cuidar deste ser, o que é que eu faço?”, achei que não estava à altura. Apetecia-me entregá-la à enfermeira que cuidaria dela melhor do que eu. Tudo o que senti durante a gravidez deixei de sentir a partir do momento em que ela nasceu”, conta. Ao mesmo tempo que lidava com estes sentimentos, “não queria falhar, queria ser a melhor mãe em tudo. A tentar superar o que estava a sentir, só criei mais ansiedade e correu ainda pior”, diz, recordando que obcecava com todas as tarefas que envolviam a bebé. “Eu mandava vir com toda a gente, estava insuportável, tão insegura, tão triste comigo mesma por não me reconhecer, sentia-me sozinha, chorava por tudo e por nada, pensava “onde é que eu me fui meter?”. Acho que tive uma espécie de depressão pós-parto que não foi tratada porque eu não procurei ninguém. A verdade é que não senti logo um amor incondicional pela minha filha, era um bebé como qualquer outro que eu tinha de cuidar”, confessa.
“Não queria falhar, queria ser a melhor mãe em tudo”
Telefone deixou de tocar
Sentiu-se, naquele momento, “desamparada e sozinha. Antes de ser mãe, o meu telefone estava sempre a tocar e de repente deixou de tocar. Ninguém queria incomodar, mas eu precisava daquele apoio. Aqui em Lisboa, não tinha amigas mães, não podia partilhar as minhas inseguranças e dificuldades. No Porto, tive muitas amigas que estavam a ser mães ao mesmo tempo mas nenhuma partilhou comigo, por exemplo, o quão doloroso é a amamentação. Para nenhuma delas foi fácil, mas disseram que não quiseram assustar-me”, conta Margarida Bento, que preferia ter “estado preparada. Gostava que me tivessem dito que pode não ser fácil, que o corpo para se reajustar leva tempo e que está tudo bem se te sentes mal porque o peito incha, começa a pingar, tens barriga flácida. Não usufruí dos primeiros três meses da minha filha, talvez não tenha sido a melhor mãe, mas dei o meu melhor, fui a melhor mãe que eu podia ter sido naqueles primeiros tempos”, afirma.
Algo que custou bastante foi a perda de liberdade. “Morreu uma Margarida para nascer outra. Eu era uma criança até ser mãe. Tinha uma vida muito boémia. Os ensaios de teatro são ao final do dia/noite, eu via três espectáculos por semana, íamos beber um copo a seguir, falar sobre o espectáculo, nunca me deitava antes das 2h e acordava às 10h. A vida mudou bastante”, conta. Mudou porque “nasceu um ser completamente indefeso. Passamos a ter liberdade condicional durante x tempo. Eu sentia que tinha perdido a minha liberdade, a minha vida, afastei-me de muitos amigos, tenho uma amiga que me disse “agora é que vais ver quem são os verdadeiros amigos”, eu não concordo com isso, acho que estamos em fases diferentes da vida, talvez daqui a uns tempos voltemos a aproximar-nos”, diz, esperançosa.
“Quando achamos que já não conseguimos mais, conseguimos”
Segundo nasceu e já pensa no terceiro
Tudo o que passou, porém, não a impediu de tentar ter outro filho e, três anos depois, surge Daniel. “Com o segundo foi muito mais fácil, até gostava de ir ao terceiro, sinto que tenho de ter mais um, não sei explicar. Sempre soube que não queria ter só um filho”, diz Margarida Bento, que acredita que o filho Daniel foi uma bênção na sua vida que veio no momento em que “tudo corria bem e se sentia mais realizada profissionalmente. As Marias Catrapumbas já existiam mas foi quando estava grávida do meu segundo filho que decido levar para a frente este projecto que estava estagnado. O meu filho iluminou o projecto. Trabalhei até à véspera de o ter tido. Ele nasceu a 15 de Junho e eu trabalhei até 14. A minha mãe dizia-me “tu és maluca”, eu andava aos saltos, a cantar. Na segunda gravidez, já sabia o que era, estava mais tranquila”, refere, acrescentando: “Já não consigo conceber a minha vida sem os meus filhos porque podem ter-me tirado muita coisa mas deram-me muito mais: paciência, espírito de sacrifício, cresci. Quando achamos que já não conseguimos mais, conseguimos. É uma superação diária”.
Margarida Bento lamenta, contudo, a grande pressão incutida nas mães para amamentar. “O parto do Daniel, ao contrário do da Laura, foi de cesariana e a recuperação foi muito mais rápida. Mas a verdade é que eles invadem o nosso corpo e há grandes mudanças. Não engordei tanto como da primeira vez mas a amamentação foi novamente péssima. Eu tentei de tudo para conseguir amamentar. Paguei cursos, gastei balúrdios, mais valia ter comprado latas de leite. Custa muito porque há uma grande pressão da sociedade para amamentar e não devia ser assim. Se consegues amamentar óptimo, se não consegues tudo bem na mesma porque há alternativas. E se não quiseres amamentar, tudo bem também”, salienta, lembrando o tormento da mastite misturada com candidíase mamária. “Os meus mamilos estavam tão feridos que quando os meus bebés mamavam pareciam vampiros, mamavam mais sangue do que leite. Tive de secar o leite, ligaram-me o peito, foi horrível. Na altura, eu só dizia “se eu tiver o terceiro vou secar logo”, mas agora passados três anos não sei se seria capaz, se calhar voltaria a tentar”, confessa.
“Talvez não tenha sido a melhor mãe, mas dei o meu melhor”
“Acho que não estou à altura da minha mãe”
A culpa é algo que a acompanha sempre. “Vivo com culpa de não estar tão presente como gostava de estar, de não ter tanta paciência ou disponibilidade para brincar. Quero sempre ser a melhor mãe, a mãe mais presente, mais brincalhona, mais fixe, quero ser uma referência para os meus filhos como a minha mãe é para mim, acho que não estou à altura da minha mãe”, revela. Hoje, Laura tem seis anos e Daniel três e Margarida Bento gostava que os filhos dissessem da mãe que é “uma companheira, uma amiga, uma referência para o que quiserem um dia seguir. Eles podem ser aquilo que quiserem ser, vou sempre apoiá-los”, garante. Mesmo quando são vítimas de discriminação. Estando num casamento interracial, Margarida Bento lembra um episódio desconfortável quando a família andava às compras. “A Laura era pequena, tinha seis meses, e o Artur estava com ela no carrinho e eu estava um pouco afastada. Uma senhora, com os seus 70 e muitos anos, passava constantemente de um lado para o outro, olhava para o Artur e para a Laura, e depois veio ter comigo e perguntou “é sua filha?”. Quando respondi que sim, disse-me “ainda bem que saiu à mãe, branquinha” e foi-se embora. Fiquei sem reacção”, lembra.
Uma situação desafiante a acrescentar às tantas que já fazem parte da maternidade, ainda mais em tempos de pandemia. “Durante a quarentena, sentia uma culpa horrível, estava a odiar ser mãe, estava farta de ver os meus filhos, queria sentir saudades deles, estava cansada de ser a Margarida mãe, queria ser a Margarida mulher, a Margarida actriz”, revela. Mesmo a relação do casal tem de estar bem sustentada para sobreviver ao nascimento e educação dos filhos. “A relação do casal muda e é por isso que tantos casais se divorciam. A vida dá uma volta de 180º e as prioridades mudam. Aquela imprevisibilidade, espontaneidade de uma relação, de ligar ao final da tarde a perguntar “vamos ao cinema, vamos ver um espectáculo?”, de repente deixa de existir porque tudo tem de ser planeado e os dias são todos iguais. Há uma rotina e o casal passa a viver sob essa rotina e nem sempre é vantajoso. Ou nos acompanhamos enquanto casal e enquanto pais ou então cada um tem de seguir o seu caminho”, afirma.