Todos os anos são desperdiçados 1 milhão de toneladas de alimentos em Portugal. Um facto que choca não só a nível económico e ambiental, mas sobretudo ético, se nos lembrarmos que 1/6 da população mundial passa fome. Nos últimos anos, o desperdício alimentar começou a ganhar a atenção dos decisores políticos que, através de campanhas, programas e medidas legislativas, tentam atenuar esta realidade. Grande parte das perdas, contudo, está fora das suas mãos e ao alcance da mudança de comportamentos dos consumidores. Há muitas formas de ajudar e dezenas de movimentos e associações a trabalhar no terreno rumo a uma sociedade de desperdício zero.
88 milhões de toneladas de alimentos (cerca de 20% do que é produzido) são desperdiçados todos os anos na União Europeia, 1 milhão (17% da produção anual de alimentos) só em Portugal, segundo estimativas do Projecto de Estudo e Reflexão sobre o Desperdício Alimentar (PERDA). “No mundo ocidental, comemos muito, comemos mal e desperdiçamos muita comida. Nada de muito surpreendente: este é apenas mais um fenómeno próprio de uma sociedade que, sendo de consumo, é também de desperdício. Além do gasto inútil de recursos ambientais e económicos associado a qualquer forma de desperdício, no caso do desperdício alimentar somos ainda interpelados de um ponto de vista moral: o facto de milhões de toneladas de alimentos serem lançadas ao lixo anualmente, num mundo onde um sexto da população mundial passa fome, dificilmente nos pode deixar indiferentes”, lê-se no documento ‘Do Campo ao Garfo – Desperdício Alimentar em Portugal’, elaborado pelo PERDA.
Os estudos sobre desperdício alimentar já existiam noutros países, mas este foi o primeiro estudo exclusivamente nacional sobre o fenómeno. O problema, no entanto, não é recente, “o ciclo de crescimento económico e consumismo” do pós 2.ª Guerra Mundial fez com que o desperdício alimentar assumisse proporções desastrosas, tendo o tema começado a ser estudado na década de 1970 com a realização da primeira Conferência Mundial sobre Alimentação (Roma, 1974). A Organização para a Alimentação e a Agricultura (FAO), agência especializada das Nações Unidas que lidera os esforços internacionais para erradicar a fome no mundo, constatou, em 2011, que um terço da produção alimentar mundial é desperdiçada, ou seja, “entre 25% e 50% de toda a produção se perde ao longo da cadeia de aprovisionamento e consumo”, tendo como resultado final que “das 4.600 kcal produzidas diariamente por cada habitante do mundo, apenas 2.000 kcal são efectivamente consumidas pelas pessoas”. A “aporia entre crescimento económico e sustentabilidade ambiental” leva a que a comida seja desperdiçada e não chegue a quem dela precisa, e os números falam por si: existem, no mundo, 870 milhões de pessoas subnutridas, de acordo com dados da FAO.
Correlação positiva entre desperdício e riqueza
“Nos países industrializados, a maioria dos alimentos são desperdiçados a nível da distribuição e do consumo final, enquanto nos países em desenvolvimento o desperdício acontece sobretudo no início da cadeia, nas fases da colheita, pós-colheita, processamento e armazenamento”, lê-se no documento. Há uma correlação positiva entre desperdício e riqueza e também entre cadeias de aprovisionamento e consumo alimentar longas e desperdício, visto que “quanto maior for o número de agentes intermediários na cadeia, e quanto mais longa esta for, maiores serão as necessidades de transporte e mais tempo demora o produto a chegar ao consumidor”. A produção de alimentos está também “sujeita a condicionantes externas, nomeadamente condições climatéricas variáveis que podem representar impactos negativos, tornando a ocorrência de perdas intrínseca ao próprio sistema produtivo. Para garantir o abastecimento alimentar, é necessário produzir em excesso e gerar perdas: a cadeia de aprovisionamento portuguesa faz chegar em média cerca de 3640 calorias por dia a cada habitante, valor bastante acima das necessidades médias diárias”, diz o PERDA. No fim do ciclo, os alimentos desperdiçados terminam em aterros e são responsáveis por emissões de metano, gás com elevado efeito de estufa. Estima-se que, a nível mundial, a produção de alimentos desperdiçados consuma 300 milhões de barris de petróleo e 25% da água potável.
A fase inicial e a fase final da cadeia são onde incide a quase totalidade das perdas, destacando-se ¾ das perdas em Portugal em produtos hortícolas, cereais, frutos e lacticínios. Uma grande parte do desperdício está, porém, do lado do consumidor: “a capitação anual estimada das perdas e desperdício alimentar em Portugal é de 97 kg por habitante/ano – dos quais 31% provêm dos consumidores”. São hábitos alimentares que podem “ser moldados. Nos países desenvolvidos, onde os sistemas de produção e distribuição são cada vez mais eficientes, a parcela de desperdício que cabe aos consumidores é tendencialmente maior, e também por este motivo eles são alvo de uma atenção particular quando se pensa em soluções para o fenómeno”, salientam os investigadores. Hábitos alimentares como comer certos produtos apenas quando são frescos (ex: pão) ou escolher um produto baseando-se apenas na aparência do mesmo devem ser repensados. “No acto de consumo, os aspectos estéticos do produto fazem parte dos critérios de escolha dos consumidores, deixando nas prateleiras produtos defeituosos, e danificados pelo manuseio (por vezes dos próprios clientes). Todavia, muitos dos produtos que são negligenciados apresentam qualidade e são próprios para consumo”, lê-se.
Famílias com filhos desperdiçam mais
Nas famílias, o desperdício é “produto de causas directas ou acções directas nas fases de planeamento e compra, armazenamento e consumo; mas é também influenciado por rotinas, estilos de vida e pelo tipo de família”, constatam, apontando “uma tendência maior para se preparar demasiada comida ou não se gostar da comida preparada no caso das famílias com filhos”. São estas, aliás, que “tendem a desperdiçar mais” devido a causas como: não planear o que se compra e comprar demasiado; tendência para comprar alimentos mais frescos e perecíveis; gestão pouco eficiente de stocks de alimentos; não gostar de comer ou reutilizar sobras de refeições e preocupações de segurança alimentar”. Os principais problemas reportados pelas cerca de 800 famílias entrevistadas, diz o estudo, foram as alterações no apetite das crianças e a dimensão das embalagens. “Os nossos entrevistados referiram, por diversas vezes, terem desperdiçado alimentos devido à embalagem ser demasiado grande e não ser possível consumir o produto dentro do prazo de validade”, lê-se no documento. Quem gosta de cozinhar mostrou-se “mais consciente e preocupado em não deitar fora alimentos” e verificou-se que “quem planeia para gerir melhor o seu tempo obtém menos desperdício porque se torna mais fácil organizar as refeições familiares, gerir os stocks de alimentos e as compras”.
Em contexto de crise, “em que o desemprego e o número de pessoas a viver no limiar da pobreza tem aumentado, a dimensão ética do problema ganha um maior peso na sociedade”, diz o PERDA. Cerca de 13% das despesas anuais dos portugueses destinam-se à compra de produtos alimentares, com a carne a assumir um peso relevante, juntamente com os cereais, o peixe e seus derivados. Neste bolo, o desperdício está inerente, chegando um dos entrevistados a admitir que se gastar 100 euros nas compras, “em média 30 vão para o lixo”. Um valor preocupante, mas ainda pequeno comparado com os resultados do Waste and Resources Action Program que concluiu que “as famílias inglesas deitam fora anualmente alimentos no valor de 745 euros”. O PERDA deixa algumas sugestões para reduzir o desperdício a nível nacional como: sensibilização de todos os intervenientes da cadeia agro-alimentar, fazendo uma análise e identificando os sectores alimentares que geram mais desperdício; subsidiação à produção; encurtamento da cadeia agro-alimentar; adequação das embalagens às necessidades do consumidor; flexibilização dos requisitos de qualidade relativos à dimensão e forma das frutas e produtos hortícolas que “estão na origem de muitas rejeições desnecessárias”; e facilitação da doação ou reaproveitamento de alimentos nomeadamente por via legislativa. Soluções que contribuiriam, certamente, para a resolução do Parlamento Europeu que propõe a redução para metade, até 2025, do desperdício alimentar na União Europeia.
CNCDA com acção integrada e multidisciplinar
Com uma “abordagem integrada e multidisciplinar”, que envolve diversas áreas governativas e entidades num processo dinâmico e participativo, foi criada, em 2016, a Comissão Nacional de Combate ao Desperdício Alimentar, com vista ao diagnóstico, avaliação e monitorização do desperdício alimentar a nível nacional, identificando boas práticas nacionais e internacionais, sistematizando indicadores de medida do desperdício alimentar nas diferentes fases da cadeia alimentar, promovendo o envolvimento de entidades da sociedade civil, criando uma plataforma eletrónica para a gestão interactiva dos bens alimentares com risco de desperdício e implementando medidas de redução de desperdício alimentar que integrem objectivos de segurança alimentar, saúde pública, combate à pobreza e boas práticas na produção, indústria agroalimentar, distribuição e consumo.
Uma “responsabilidade partilhada do produtor ao consumidor” implícita num plano de acção que inclui medidas como: rever e difundir guidelines de orientação de segurança alimentar, promover ações de sensibilização junto do consumidor e para a população em idade escolar, desenvolver ações de formação específicas para diferentes segmentos da cadeia, publicar regularmente estatísticas dos níveis de desperdício alimentar, divulgar boas práticas, promover o desenvolvimento de processos inovadores, facilitar e incentivar o regime de doação de géneros alimentícios, melhorar a articulação e envolvimento da administração do Estado na regulação europeia e internacional, implementar uma plataforma colaborativa que permita identificar disponibilidades por tipo de géneros alimentícios, promover locais específicos para venda de produtos em risco de desperdício, desenvolver metodologia para o cálculo do desperdício alimentar nas diferentes fases da cadeia e desenvolver projetos-piloto na área da saúde e nutrição.
A CNCDA garante, no seu site, que o trabalho realizado permitiu que, em 2020, fossem direccionadas para doação cerca de 18.534 toneladas de produtos alimentares provenientes dos estabelecimentos dos associados da Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição, mais 16% do que no ano anterior. “De acordo com estimativas, em 2020 evitou-se o desperdício de mais de 12.300 toneladas de produtos que estavam prestes a atingir a data de validade, mais 17% do que em 2019, através de um circuito para facilitar o consumo destes produtos em condições de segurança (ex: identificação dos produtos com etiqueta específica e depreciação do preço)”, informam. Continuam a consciencializar o público através da publicação de newsletters com eventos e boas práticas e lançaram o selo ‘Produção Sustentável, Consumo Responsável’, dirigido a todos os que pretendam promover e dar visibilidade a iniciativas no âmbito do combate ao desperdício alimentar. A CNCDA encontra-se ainda a realizar um inquérito nacional sobre o desperdício com vista à recolha de dados que permitam obter um diagnóstico realista sobre o nível de perdas alimentares em Portugal.
Dose Certa e Fruta Feia
Muitos projectos foram surgindo no âmbito do combate ao desperdício alimentar. Integrado na política de prevenção da Lipor, que tem subjacente a redução da produção de resíduos na fonte, o projecto Dose Certa está a ser implementado em restaurantes e cantinas nacionais, para avaliar o potencial de redução do desperdício de alimentos, durante a sua confecção e/ou deixados no prato do cliente, e incentivando à criação, em cada espaço, de um menu sustentável, que promova uma alimentação mais equilibrada, realizado em parceria com a Associação Portuguesa de Nutrição. As práticas de compra, confecção, empratamento e encaminhamento de resíduos são analisadas e, se necessário, são sugeridas melhorias. Pela primeira vez, a circularidade ao nível da restauração é analisada e divulgada num projecto em que se envolvem as equipas nas pesagens dos resíduos alimentares de forma a aumentar a percepção do problema. Os estabelecimentos aderentes do Grande Porto já estão a contribuir para a redução de 30% do desperdício alimentar que produzem através dos seus clientes e colaboradores, uma prática que além de reduzir o desperdício de alimentos, reduz também os custos dos espaços, ao mesmo tempo que contribui para a preservação dos recursos naturais.
Já a Fruta Feia pretende combater a discriminação da fruta devido ao tamanho, formato e cor. A cooperativa propõe-se a “inverter tendências de normalização de frutas e legumes que nada têm a ver com questões de segurança e qualidade alimentar”, dizem no site, criando “um mercado alternativo” para a fruta e hortaliças ‘feias’ que incentive ao consumo de frutas da época e da região a preços acessíveis e gere valor para os agricultores, “combatendo o desperdício alimentar e gastos desnecessários na produção”, explicam. A primeira delegação da Fruta Feia surgiu em 2013 em Lisboa e desde então o projecto expandiu-se, tendo hoje pontos de recolha também em Cascais, Matosinhos, Vila Nova de Gaia e Porto. Trabalham com os produtores da região, passando nas suas hortas e pomares para comprar as frutas e hortaliças “pequenas, grandes ou disformes que não conseguem escoar” e com esses produtos preparam cestas para vender aos associados da Cooperativa. Quem quiser aderir ao projecto, paga uma quota anual de 5€ e, ao recolher o cesto nos pontos de entrega, o valor referente ao tamanho escolhido. A Fruta Feia realiza ainda workshops sobre desperdício alimentar e consumo sustentável nas escolas, para crianças do pré-escolar ao 3.º ciclo do ensino básico, registando um total de 1400 crianças alcançadas até ao momento. “Todas elas provaram fruta bonita e fruta feia sem saberem qual era qual e não conseguiram decidir porque afinal o sabor é igual”, diz a cooperativa.
Zero Desperdício e Refood
Nesta batalha de combate ao desperdício está também a Dariacordar, “uma associação sem fins lucrativos que tem por finalidades promover e contribuir para a prevenção e redução dos excedentes e, caso existam, a sua manutenção na cadeia de valor. Com foco na sustentabilidade ambiental, procuramos continuamente aumentar a consciencialização para a mudança de paradigma e comportamentos”, diz a fundadora Paula Policarpo. O modelo de economia colaborativa, inclusiva e circular da associação, denominado Zero Desperdício, implementado no país desde 2012, tem como objectivo principal “redistribuir, reduzir e reciclar os excedentes alimentares e têxteis, contribuindo assim para a sua sustentabilidade social, ambiental, económica e cívica”. A Dariacordar, que trabalha os eixos da capacitação, coordenação, monitorização e mobilização, desenvolve, com o mote ‘Nada se perde, tudo se transforma’, um conjunto de acções junto de entidades públicas que facilitem e promovam formas de aumentar o ciclo de vida dos bens e/ou revaloriza-los, bem como acções em estabelecimentos de ensino – disponibilizando, gratuitamente, no seu site, duas colecções de livros informativos sobre a temática do desperdício alimentar para crianças e jovens – e junto da comunidade em geral. “Já recuperámos mais de 22.000.000 refeições em todo o território nacional e, numa base diária, evitámos mais de 11.000 toneladas de resíduos alimentares, apoiando cerca de 640.000 pessoas, com a colaboração de uma rede de cerca 900 entidades parceiras, doadores e cerca de 300 entidades receptoras/beneficiárias das redes sociais dos territórios abrangidos”, revela Paula Policarpo.
Hunter Halder criou a Refood com pouco mais do que uma bicicleta emprestada e muita força de vontade. “A crise de 2008 criou uma nova situação financeira que me fez reflectir. Olhei-me ao espelho e pensei que até então tudo o que tinha feito tinha sido em benefício próprio, centrado em mim, nunca nos outros, então tomei a decisão de fazer algo pela comunidade”, conta à Magafone. Teve várias ideias, mas a Refood sobressaiu e começou a angariar voluntários e a percorrer restaurantes da vizinhança a pedir sobras de comida para distribuir pelos mais necessitados. “Comecei sozinho, um estrangeiro a falar com os restaurantes numa bicicleta ao final do dia. Apresentei a oportunidade de doar alimentos a 45 entidades em 7 quarteirões, 30 aceitaram. Desses, 15 fechavam ao final do dia e os outros ao final da noite, por isso fazia duas rotas de recolha, uma às 21h00 e outra às 00h00. Os alimentos eram depois deixados na Igreja Nossa Senhora das Dores, a Igreja foi a nossa primeira parceira”, conta. De um homem numa bicicleta, a Refood passou para 60 núcleos, espalhados pelo país e pelo mundo, 7000 voluntários, 2000 parceiros e 7000 beneficiários, assegurando 2 milhões de refeições resgatadas e entregues neste projecto 100% voluntário que funciona à base de parcerias. “Tudo o que chega ao centro de operações entra e sai em 24 horas. Recolhemos, preparamos os cabazes, compomos as refeições segundo as necessidades de cada família, adicionamos iogurtes, pão ou fruta, e distribuímos. Cada 2 horas de serviço de um voluntário alimenta 10 famílias”, diz Hunter Halder.
A pandemia fez com que os pedidos de ajuda disparassem. “Pessoas que trabalhavam por conta própria, a recibos verdes, muita gente das artes, de um dia para o outro não tinha como se sustentar. A necessidade vai aumentar antes de diminuir. O nosso papel é criar capacidade de resposta, precisamos de viaturas, mais núcleos, mais voluntários”, apela. Hunter Halder aguarda, impaciente, o final da pandemia para poder celebrar os 10 anos da Refood, fundada oficialmente em 2011, mostrando-se feliz com o trabalho “gratificante” que une a comunidade e salientando que “sem envolver os cidadãos nunca será possível atingir os objectivos” mundiais no que toca ao desperdício alimentar. “Não é responsável produzir toneladas de comida e depois deitar fora. Nós interceptamos este processo e promovemos a distribuição e consumo com o resgate de comida e entrega a quem precisa. Felizmente, já notamos menos desperdício na restauração e os supermercados a doar mais. As pessoas estão mais consciencializadas sobre esta realidade”, afirma, confiante na lei aprovada em Assembleia da República, proposta pelo PAN, que estabelece que as empresas do sector agroalimentar com um volume de negócios anual superior a 50 milhões de euros ou que empreguem 250 ou mais pessoas são obrigadas a doar os géneros alimentícios que, não sendo susceptíveis de prejudicar a saúde do consumidor, tenham perdido a sua condição de comercialização. “Todos os dias, no mundo, comida em perfeitas condições perde valor comercial, mas não perde valor nutritivo. Nesta janela de oportunidade, temos espaço para alimentar o mundo sem custos. Está nas nossas mãos. Em vez de colocar comida no lixo, coloquem numa embalagem da Refood”, apela.
Unidos Contra o Desperdício e Too Good to Go
Dentro desta temática, destaca-se também o movimento Unidos Contra o Desperdício. Surgido da “vontade de juntar vontades”, o movimento “cívico e nacional, agregador e educativo”, criado em 2020 por várias entidades congregadas pela Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares, une a sociedade num combate activo e positivo ao desperdício alimentar. “Em 2019, os 21 Bancos Alimentares foram responsáveis por evitar que cerca de 17.218 toneladas de alimentos fossem para o lixo, reaproveitando-os para alimentar mais de 320.000 pessoas ao longo de todo o ano”, diz o movimento, no seu site. Unidos Contra o Desperdício é um “projecto de sensibilização e comunicação com várias vozes e diferentes tons que une e congrega empresas, instituições, o público e o privado e as várias gerações em torno do objectivo único de lutar contra o desperdício alimentar”, utilizando como ferramentas o portal digital, campanhas institucionais, projectos de comunicação e o uso da marca. “O desperdício alimentar é uma realidade com valores tão elevados que surpreendem e chocam qualquer pessoa: todos os anos um terço da produção alimentar é desperdiçada no mundo”, dizem.
Ainda, a aplicação Too Good To Go. “Os alimentos são simplesmente bons demais para serem desperdiçados (Too Good To Go) e a nossa aventura começou com esta forte convicção.
A ideia de usar tecnologia para conectar pessoas e capacitá-las a reduzir o desperdício de alimentos começou na Dinamarca e foi rapidamente adoptada por várias mentes empreendedoras na Europa. Com a mesma ambição e paixão por aquilo que daria mais sentido ao nosso sistema alimentar, decidimos unir forças e criar uma solução simples: ligar pessoas na hora certa, no local certo, para reduzir o desperdício alimentar”, esta é a premissa da app onde já estão inscritos 3547 negócios. “A nossa aplicação é agora o maior mercado on-line B2C de excedente alimentar no mundo. Aproximamos utilizadores de empresas que têm excedente alimentar, dando uma segunda oportunidade a alimentos de qualidade que de outra forma seriam desperdiçados. Os utilizadores podem usufruir de refeições deliciosas a preços mais acessíveis, as empresas chegam a novos clientes e optimizam operações e o planeta tem menos comida desperdiçada para lidar – todos ganham”, diz a Too Good to Go no seu site.
Continente, promotor de boas práticas em toda a cadeia alimentar
Mas nem só de projectos e associações se faz o combate ao desperdício alimentar. As grandes superfícies, como o Continente, também se preocupam com esta temática. “O desperdício alimentar é um tema central na nossa agenda de sustentabilidade e para o qual Continente, enquanto retalhista, tem um contributo a dar. Assim, com o propósito de evitar o desperdício de qualquer alimento que esteja em condições de ser consumido, temos vindo a desenvolver uma ação concertada com as nossas equipas e junto dos nossos fornecedores e clientes”, diz a directora de sustentabilidade da SONAE MC, Mariana Silva, à Magafone. A empresa assumiu um compromisso de “diminuir continuamente a quebra das lojas e entrepostos, seja melhorando procedimentos, seja inovando nas formas de acelerar o escoamento de produtos, seja fazendo uma gestão mais eficiente das doações. No que diz respeito aos fornecedores, por exemplo, desde 1998 que o Clube Produtores Continente apoia os produtores nacionais de diversas áreas, garantindo não só o escoamento das produções, mas também a sua formação contínua, adaptação da oferta à procura e valorização de produtos locais/regionais que permitem promover os circuitos de abastecimentos mais curtos e sustentáveis e com menor desperdício”, refere.
O reaproveitamento e redistribuição de alimentos, através de doações de excedentes alimentares a instituições de solidariedade social e de apoio a animais, faz parte do dia-a-dia das lojas da SONAE MC. “As doações diárias a instituições decorrem há mais de 27 anos, durante todo o ano, nas mais de 300 lojas Continente do país. Neste âmbito, em 2020, a Missão Continente distribuiu um total de 10,9 milhões de euros em excedentes alimentares a 1.170 instituições: 9 milhões de euros foram doados a 819 instituições de solidariedade social e 1,9 milhões de euros a 351 associações de apoio e bem-estar animal”, enumera Mariana Silva, frisando que “o aceleramento do escoamento dos produtos tem permitido evitar toneladas de desperdício alimentar, ao mesmo tempo que oferecem produtos que preservam excelentes condições de consumo por um preço mais simpático para o consumidor”. A desvalorização do P.V.P. em produtos que se encontram próximos de atingir a validade (identificados com etiquetas cor-de-rosa) é também uma forma de evitar o desperdício de alimentos e beneficiar o consumidor com um preço mais baixo. Em 2020, esta medida permitiu evitar mais de 20 milhões de euros de desperdício, adianta Mariana Silva.
Em 2019, a SONAE MC lançou o piloto das Caixas Zer0% Desperdício, através das quais o Continente disponibiliza cabazes com 5kg de frutas e legumes que estão perto de ultrapassar o ponto óptimo de consumo por apenas 2,5€. “Desde então os nossos clientes já ‘salvaram’ centenas de milhares de kg de frutas e legumes, mais de 200 mil só em 2021. As Caixas Zer0% Desperdício estão agora disponíveis nas mais de 300 lojas do país”, afirma. Além do trabalho no âmbito da prevenção de desperdício alimentar, o Continente também procura valorizar o desperdício remanescente. Desde 2017, tem apostado no desenvolvimento e lançamento de produtos de economia circular, aproveitando alimentos que perdem valor comercial no decorrer da actividade diária da loja, mas mantêm perfeitas condições de consumo, e, em parceria com os fornecedores, aproveitam o desperdício gerado na produção. “A título de exemplo, com o excedente de produção das maçãs e peras IGP, transformamo-las em snacks de fruta desidratada ou em sumos naturais, como o sumo 100% maçãs de Alcobaça. Para além de trabalharmos a melhoria contínua dos nossos processos e produtos, assumimos o compromisso de mobilizar toda a cadeia de valor. O retalho tem a capacidade única de influenciar tanto a montante como a jusante, pois é o intermediário entre produtores e consumidores”, aponta.
Já ao nível do consumidor, a Missão Continente tem sido a plataforma de lançamento de diversas iniciativas de sensibilização e até de formação, com o principal objectivo de levar os portugueses a adoptarem estilos de vida e padrões de consumo mais sustentáveis. Desenvolveram um Guia para o Combate ao Desperdício Alimentar com um conjunto de medidas e boas práticas – da conservação à confecção, do armazenamento ao consumo – que cada um poderá adoptar em sua casa e com o Programa Escola Missão Continente chegam a comunidades escolares que vão desde o Pré-Escolar ao 2.º ciclo do ensino básico, contando já com mais de 170 mil alunos impactados pelo programa. “O Continente têm-se associado também a um conjunto de movimentos nacionais que têm no seu âmago o combate ao desperdício alimentar, como a campanha da APED ‘Saber a diferença, faz a diferença’, focada nas datas de validade dos produtos alimentares e que pretendia ensinar a interpretar e distinguir as diferentes indicações nas embalagens”, refere. O Continente apela à adopção de pequenos gestos que fazem toda a diferença. “A comunicação na zona das frutas e legumes, por exemplo, chama a atenção para as bananas ‘solteiras’ (separadas do respectivo cacho e que por isso poderão amadurecer mais rapidamente), sensibilizando o cliente para a aquisição das mesmas”, exemplifica Mariana Silva, rematando: “O combate ao desperdício alimentar é sem dúvida um desafio que convoca todas as partes e apenas com uma acção concertada será possível encontrar respostas assertivas e eficazes, capazes de promover uma alteração de paradigma”.
Tremoço e microalgas, soluções alternativas?
Atenta à temática do desperdício alimentar e já à procura de soluções de alimentação alternativas, está a professora do Instituto Superior de Agronomia (ISA) e coordenadora do centro de investigação Linking Landscape Environment Agriculture and Food (LEAF), Isabel Sousa. “Começámos há muitos anos a estudar fontes alternativas de proteína vegetal, desde os anos 70 e 80 que publicamos trabalhos em tremoço e tremocilha”, diz Isabel Sousa, revelando o trabalho conseguido com “a proteína mais abundante no reino vegetal. Em 2000, desenvolvemos uma maionese vegan com proteína de tremoço a substituir o ovo, queques vegan com proteína de tremoço e farófias de proteína de tremoço”, enumera. Do tremoço, passaram para o estudo das microalgas. “Quisemos perceber como o processamento, na incorporação das microalgas em alimentos de largo consumo (bolachas doces e salgadas, molhos/condimentos, pão, massas), influenciava a disponibilidade das suas propriedades tão importantes na manutenção da saúde”, explica.
No LEAF, prosseguem focados nas leguminosas nacionais, em especial no tremoço, já que “as suas sementes têm cerca de 40% de proteína, não têm gordura nem amido e têm propriedades anti-inflamatórias e anti-cancerígenas, mas também o grão-de-bico, com as quais podemos produzir bebidas alternativas ao leite com teores proteicos comparáveis, o que não se verifica com a larga maioria das bebidas comerciais. As leguminosas melhoram o solo, vivem em perfeita harmonia, com benefício mútuo, reduzindo a necessidade em adubação azotada”, elucida. Já as microalgas, “além do seu impacto benéfico na saúde, com potencial nutricional muito elevado”, têm a grande vantagem da sustentabilidade. “Podem ser cultivadas sem ocuparem largas extensões de terreno. O nosso país tornou-se um grande produtor de microalgas, na sua forma mais natural, usando a luz do sol e consumindo largas quantidades de CO2, que as microalgas transformam em oxigénio”, afirma Isabel Sousa, acrescentando que tanto o ISA como o LEAF estão também a desenvolver “um trabalho notável em fermentações sólidas, com leguminosas nacionais, desde o chícharo ao feijão incluindo, claro, o tremoço e o grão. Mas também aplicámos estas fermentações no aproveitamento do tomate que por não ser vermelho não serve para a indústria e fica no terreno por colher. Estamos a falar de muitas toneladas de perdas de alimento, mais de 100 megatoneladas/ano (CCTI 2015) de tomate não vermelho, que ficam no solo e que temos de recuperar para a cadeia alimentar”, aponta.
No Instituto Superior de Agronomia, sempre trabalharam a revalorização de subprodutos da indústria alimentar, “desde o repiso do tomate para incorporar em alimentos de cereais (pão, bolachas, massas), à utilização da dreche de cerveja para enriquecer o pão em antioxidantes e prebióticos, à utilização dos bagaços de fruta depois da extracção do sumo, como fonte de ingredientes bioactivos com forte impacto na saúde, até ao uso de fontes pouco usuais de alimento, ou já esquecidas, como a bolota e a alfarroba, para além do tremoço e do chícharo. Trabalhamos também o uso do soro de queijo, um subproduto muito abundante da indústria de lacticínios, que fermentado substitui com vantagem as soluções de lixívia na desinfecção de vegetais, frutos e saladas”, revela. O reconhecimento deste trabalho começa a chegar pelo “potencial da adopção de cadeias curtas para reduzir o impacto do transporte das matérias-primas e diminuir a dependência alimentar, deslocando o equilíbrio das transacções para o lado mais favorável e oferecendo uma panóplia de novas opções alimentares mais sustentáveis”, refere Isabel Sousa. O ISA lidera ainda na área da agricultura de precisão, que será um “fortíssimo aliado na redução do impacto ambiental da produção de alimentos, permitindo produzir de uma forma muito mais eficiente e respeitadora do equilíbrio natural, que aliada a práticas como a utilização de rotações de culturas, de regeneração de solos e mobilizações mínimas, são o futuro da produção agrícola”, conclui.
Algumas sugestões para reduzir o Desperdício Alimentar