Maria Granel foi a primeira mercearia biológica a granel do país a abrir em 2015 mas, garante Eunice Maia, a fundadora, “aqui não há nada de novo”. A loja é um regresso ao “imaginário colectivo das mercearias de bairro” num percurso de transição ecológica que se trilha rumo a um menor impacto ambiental. Mais do que um espaço físico, a Maria Granel é um “compromisso com o futuro” e a equipa desdobra-se em acções comunitárias que vão muito além da vertente comercial da loja.
Eunice Maia e o marido estão “profundamente ligados à terra”, ela minhota, ele açoriano, e essas raízes são tão fortes que quando se mudaram para a cidade, procuraram o porto de abrigo mais próximo. “Só consigo descrever a origem desta loja como um apelo enorme de saudade, tudo nasceu não como um compromisso com a sustentabilidade, mas como um regresso à terra”, afirma a fundadora da loja Maria Granel, o primeiro espaço a nível nacional, aberto em 2015, que conjugou na mesma loja venda a granel e produtos biológicos. “Na semana anterior à abertura, estávamos cheios de medo, foi insónia atrás de insónia, tínhamos receio que as pessoas não percebessem, não aderissem, mas a verdade é que reagiram muito bem. Sentíamos que era uma necessidade no mercado português mas não há nada como ver a reacção das pessoas e as pessoas sentiram o impacto nas suas vidas”. O impacto de quem “não está apenas a comprar, mas a contribuir para uma causa”.
Chamou-se à loja Maria “em homenagem às mulheres portuguesas” mas a inspiração para muito do que é hoje a Maria Granel veio de uma francesa. “Os projectos, as pessoas, com que me fui cruzando foram decisivos para transformar a minha vida e dar início à minha transição ecológica. A grande inspiração foi Béa Johnson, lembro-me de ver uma reportagem em que a acompanhavam no seu dia-a-dia e num determinado momento ela entrava numa grande superfície, carregada de cestos e de fracos, e se dirigia à secção de granel, e eu, primeiro, fiquei intrigada e, depois, rendida quando a vi, frasco a frasco, a reabastecer-se da quantidade exacta que a família ia precisar para as refeições”. Foi esse o momento em que começou a nascer a filosofia da Maria Granel. “Decidimos que ao abrir as portas íamos ter esse compromisso, de incentivar as pessoas a reutilizarem os seus próprios recipientes, foi um momento de viragem”, afirma Eunice Maia, explicando que o granel permite “além de evitar resíduos, controlar as quantidades e assim reduzir o desperdício alimentar. Sou muito suspeita mas é a nossa pequena revolução, dizer às pessoas para que planifiquem e repensem o seu consumo”.
Imaginário colectivo da mercearia de bairro
Um conceito que parece novo, mas não é. “Trata-se da recuperação de um imaginário colectivo da mercearia de bairro, dos afectos que nas grandes superfícies acabam por se perder. Falamos de um comércio que é humanizado, conhecemos quem está do outro lado, o que gosta, a sua família”, diz Eunice Maia, que ainda se recorda da mercearia da sua rua. “É uma das memórias mais felizes da minha infância”, revela. Os clientes fiéis mantêm-se desde o início da Maria Granel, uma loja de menos de 100m2 em Alvalade até à segunda loja em Campo de Ourique, e a proximidade até lhes deu uma alcunha. “Referimo-nos aos nossos clientes como queridos fregueses, alguns já fazem parte da família Maria Granel”, diz.
O espaço é comercial mas a sua missão vai mais além. “A nossa primeira mensagem é, antes de adquirirem o que quer que seja que está nesta loja, é muito importante olhar para o que já temos porque não há nada mais sustentável do que aquilo que já temos em casa”, alerta Eunice Maia, salientando que cada produto presente na loja foi devidamente acompanhado. “Em parceria com a Ponto Verde, fizemos um relatório de desempenho ambiental, analisamos a rastreabilidade do produto, quem o produz, em que condições, que recompensa recebe, qual o impacto desse produto a nível ambiental, social e económico, tudo isso é examinado e comunicado com transparência”, explica. Mais do que uma loja, a Maria Granel é uma ponte com a comunidade através do “empoderamento para a mudança” com consultoria, palestras, conversas informais e tantas outras actividades. “Não estava pensado no início nem imaginávamos mas as pessoas começaram a reconhecer a proposta de valor e também o desafio que estávamos a lançar. A redução do desperdício é uma caminhada longa, lenta e imperfeita, tanto na loja como na vida”, diz Eunice Maia.
Já trabalharam com muitas empresas nesta educação para o slow living (vida desacelerada) e encontram-se agora com um projecto-piloto, no Colégio de Lamas e na Casa Pia, que acompanha durante um ano lectivo a comunidade escolar – em equipas que incluem professores, alunos, funcionários, administração e as próprias famílias – no esforço pela redução de resíduos. O primeiro passo? O diagnóstico. “Durante uma semana acumulamos todos os resíduos gerados na escola, depois pesamos, categorizamos e pela primeira vez estas instituições têm noção do desperdício que geram e a partir daí temos um plano de acção implementado com a ajuda de todos. O diagnóstico é um momento profundamente transformador em que as pessoas se apercebem dos resíduos consumidos. Todo o descarte está concebido, até do ponto de vista visual e psicológico, para termos a percepção errada de que deitamos fora e alguém trata, mas o “fora” não existe, tudo fica sempre dentro do planeta”, sublinha. O projecto-piloto, que Eunice Maia espera estender a mais escolas, visa dar formação sobre o caminho do lixo de forma a criar cantinas zero waste (sem desperdício). “Vamos monitorizando os resíduos que vão sendo gerados e a meta é conseguir reduzir 90%, ficando só 10% ou menos de resíduos para seguir para aterro. Já acontece no mundo em várias escolas”, refere.
O trabalho que ninguém vê
O trabalho da Maria Granel junto da comunidade é visível, mas nos bastidores há muito trabalho que ninguém vê. “No supermercado, recebe-se a embalagem e coloca-se na prateleira. Aqui, o produto chega em sacos de grandes quantidades e depois nós obedecemos a uma série de princípios e boas práticas certificados, temos uma entidade independente externa que verifica tudo, tem de estar tudo higienizado antes da loja abrir e depois de ela fechar, há muito mais investimento”, refere, salientando: “Tudo aqui é um elogio a uma certa lentidão e a uma forma de vida que está em contraciclo com o nosso dia-a-dia”. A revolução começa com cada um de nós, é a frase mote da Maria Granel, e daí a iniciativa Zero Waste Pantry Makeover, que dá às pessoas a oportunidade de ter, em sua casa, uma organizadora, uma nutricionista e a própria Eunice Maia que, através da sua experiência, colmatam a necessidade sentida das “pessoas que querem mudar mas não sabem por onde começar. Vamos às suas despensas e ajudamos na transição ecológica”, afirma.
Eunice Maia acredita que todos temos um “dedinho” verde. “A revolução tem de respeitar o nosso ritmo e contexto, alguém que tem uma loja de granel próxima pode fazer sentido começar por aí; outra pessoa que não tenha pode começar por outro gesto. O mais importante e o mais poderoso é pararmos, olharmos para aquilo que consumimos, como consumimos e repensar, perceber o que é que faz sentido no nosso dia-a-dia e o que podemos reduzir e reutilizar. Pensar no fim de cada coisa é um elogio à vida”, refere. Basta olhar para o percurso da própria Eunice Maia. “Venho de um paradigma consumista e hoje abraço a missão de redução de desperdício. Todos temos dentro de nós o caminho da sustentabilidade e há um momento na vida de cada pessoa em que há esse despertar. É muito importante parar para o ouvir”.