Sara Ferreira é gerontóloga e uma ávida comunicadora sobre as várias dimensões do envelhecimento. Na sua página de Instagram, ensina como comunicar com este grupo sem infantilizar a linguagem ou retirar-lhes capacidades que ainda preservam como cidadãos activos e participativos de uma comunidade. Para a profissional de saúde, é preciso falar mais sobre estes temas que ainda são “desvalorizados” e dão, muitas vezes, origem a violência psicológica e efeitos nefastos nos idosos.
O que faz uma gerontóloga?
A gerontologia é uma área de estudo do envelhecimento humano, é a ciência que estuda o ser humano na sua amplitude, nos aspectos biológicos, sociológicos e psicológicos, e especificamente no processo de envelhecimento. Um gerontólogo não substitui outros profissionais, mas traz a lente que foca o indivíduo na fase da velhice. Não substituímos um psicólogo, mas estudamos a psicologia no envelhecimento; não substituímos o nutricionista, mas temos formação de base sobre a nutrição no envelhecimento. Tudo isto permite-nos ter uma base multidisciplinar para avaliarmos o indivíduo de uma forma biopsicossocial. O nosso papel assemelha-se a um gestor de caso, desenhamos um plano de intervenção para as pessoas nas várias áreas e chamamos os colegas das especialidades para poderem fazer uma intervenção mais aprofundada dentro das necessidades que identificamos.
Qual a importância de uma comunicação humanizada no envelhecimento?
A filosofia de cuidados humanitude trouxe-me a consciência que quando estamos perante uma pessoa idosa, estamos perante uma pessoa que continua a ter as suas características, a sua personalidade vincada, com uma história de vida mais longa do que nós e, para que ela possa continuar a sentir-se pessoa, temos de a reconhecer enquanto ser humano e interagir com a dignidade e o valor que tem de contribuição e participação, cuidados que, muitas vezes, vamos perdendo devido à representação que existe da pessoa idosa na sociedade. À medida que a pessoa se aproxima da velhice, vai-se homogeneizando as suas características. Dizem coisas como ‘todos os idosos são teimosos’, como se a teimosa não existisse noutras fases de vida; ou ‘a velhice é uma segunda infância’, que me mexe com os nervos porque é uma visão muito errada. Trazer a humanização na interacção e na comunicação retira do nosso olhar estes estereótipos e generalizações que existem relativamente à pessoa idosa e que geram consequências na sua autoestima, no seu sentido de ser pessoa e na sua dignidade. Somos seres sociais, é o que nos diferencia dos restantes seres vivos, e se não tivermos este cuidado de permitir que aquela pessoa continue a sentir-se digna com o seu sentido de pertença à espécie humana, ela perder-se-á no tempo e vai deixar de se reconhecer, perdendo capacidades de comunicação, de escolha, de decisão. Nós, sociedade, é que lhe vamos retirando essa possibilidade, tudo advém desta interacção e desta forma de olhar para a pessoa idosa.
Uma das formas de interacção mais habituais é a utilização da infantilização da linguagem. Que impactos pode ter no convívio com as pessoas idosas?
O Elderspeak é uma forma de comunicação que advém desta representação que a sociedade tem da pessoa idosa, tratando-a como uma segunda infância. Por um lado, pode ser uma acomodação, se existirem algumas características reais em certas pessoas idosas que podem ser uma ferramenta para facilitar a interacção. Todos temos amigos que têm uma forma de comunicação mais carinhosa e nos tratam por diminutivo, que têm o hábito de se referir às coisas por diminutivos. Essas pessoas, quando envelhecerem, possivelmente a forma de comunicar com elas continuará a ser válida, que é muito semelhante à forma de comunicar com uma criança: diminutivos, entoação quase a cantar, volume exagerado. Mas o que acontece é que, por existir esta acomodação a determinadas situações particulares, generaliza-se às restantes, pensando que todos os idosos são assim. Por exemplo, um senhor que sempre foi tratado por António, quando chega a idoso é o Toninho. Ignoramos que a pessoa continua a ter a sua preferência e a reconhecer-se como sempre foi tratada. A infantilização não traz nada de bom, nem para a pessoa que vê a sua identidade diminuída, nem para quem está a interagir com ela que acabará por provocar uma barreira na comunicação. Nós, profissionais técnicos e familiares, se começarmos a interagir da forma errada, ergue-se uma barreira de construção da relação que dificulta posteriormente todo o processo. Parte-se do pressuposto que todas as pessoas gostam da mesma forma de tratamento e isso diminui a identidade e autoestima das mesmas.
A violência contra a pessoa idosa é uma realidade frequente em Portugal?
Sim, não é muito falada porque é uma realidade de certa forma desvalorizada. Nem falando da física, que qualquer pessoa reconhece, há um tipo de violência psicológica – o não permitir que a pessoa tome as suas próprias decisões, que gira o seu dinheiro – que não é reconhecida como violência e existe em larga escala. É muito subtil, nas suas mais variadas formas, e todo o tipo de violência tem um impacto muito negativo para a pessoa, mas é difícil combater porque há esta dificuldade em reconhecer a possibilidade de a pessoa poder manter a sua autonomia. Por exemplo, quando a pessoa ainda tem capacidade para fazer as suas refeições, mas alguém acha que não e substitui-a nessa tarefa, isso é violência, estamos a substituí-la numa tarefa que ela consegue fazer autonomamente e estamos consequentemente a fazer com que a perca. A sociedade não interpreta isto como um acto de violência contra a pessoa idosa e por isso se fosse possível estudar a percentagem que existe de idosos que sofrem este tipo de tratamento, ficaríamos chocados com os resultados.
Há algum factor de risco que faça com que certos idosos estejam mais vulneráveis a este tipo de comportamento?
Existem vários, mas é sobretudo o desconhecimento e a cultura paternalista de achar que fazer o máximo possível pela pessoa é estar a fazer bem. ‘Se faço tudo pela minha mãe para ela ter o menos trabalho possível, estou a fazer bem’ e nem sempre é assim. Há muitos mitos e estereótipos associados à velhice e por isso é tão importante falar sobre isto e desmistificar ideias porque amudança só chegará se se mudar a forma de olhar para a pessoa idosa. Antigamente, ainda se podia dizer que a pessoa idosa não exercia a sua autonomia porque não tinha consciência que podia continuar activa depois da reforma; mas neste momento essa questão não se coloca. Hoje, têm todas as ferramentas e uma melhor qualidade de vida, mas não conseguem colocar em prática a sua autonomia e conhecimento e continuar a ter um papel activo e participativo na sociedade por causa do contexto em que estão inseridas. Neste momento, a nossa acção tem de ser no contexto para que tenham condições para continuar a aplicar as suas capacidades. Já são cada vez mais reivindicativas quando existem tentativas de substituição, já não há a mentalidade de ‘o meu filho é que sabe’, há uma maior consciência por parte dos idosos, mas o próprio meio ainda lhes está a tirar este poder e esta possibilidade de continuarem a ter um papel legítimo porque continuam a ser pessoas.
Foi para combater este desconhecimento que decidiu criar a sua página?
Sim, gosto muito de comunicar, sobretudo sobre este tema. Se temos oportunidade de falar para muita gente, temos de a aproveitar. Incomodam-me muito estas questões de substituição e infantilização, ver inclusivamente profissionais em consulta a dirigir perguntas ao familiar em vez do paciente que está na mesma sala. É um acto de violência, desconsiderar a pessoa, não sei como é que acham que o familiar sabe mais sobre a pessoa do que ela própria. Esta minha inquietação com as coisas menos boas que vejo a acontecer no dia-a-dia faz-me ir falando sobre estas ideias erradas. Temos de nos estar sempre a autopoliciar porque de vez em quando, se não estamos atentos, seguimos na onda da sociedade. Surgiu um post há pouco tempo de uma entidade conhecida a dizer algo como ‘se preferes x a y é porque já não és jovenm’ e isto é alimentar preconceitos em relação à idade. As coisas mais positivas são sempre associadas à juventude e o menos fixe é associado à velhice. Idadismo é a terceira maior causa de discriminação no mundo, a discriminação em relação à idade. Se não tivermos constantemente a policiar, acabamos por cair nestes erros, porque é mais fácil pensar como a maioria do que fazer um esforço para contrariar hábitos enraizados nos meios em que estamos inseridos.
Tornou-se mais sensível a estas temáticas porque também já experienciou comunicação violenta?
Quando criei a página, não era minha intenção direccionar para um público específico porque a comunicação não violenta aplica-se a qualquer pessoa, mas o bichinho da gerontologia puxou-me e ganhou. Já partilhei que tive uma experiência de trabalho num call center e foi das experiências mais violentas que tive, acho que não voltaria a fazê-lo. A comunicação à distância faz com que as pessoas percam uma quantidade de filtros e de medos na interacção e eu estava numa linha de reclamação, um atendimento em que a pessoa já entrava na chamada chateada com alguma coisa. Esquecem-se que do outro lado está uma pessoa e agridem gratuitamente, não percebendo que tudo o que dizem tem um impacto directo no bem-estar da pessoa com quem estão a interagir, na sua autoestima e na construção da sua identidade. Temos uma tendência ao julgamento assustadora, até connosco mesmo, facilmente transpomos isso para a nossa comunicação, nunca pensando como vai ser recebida a mensagem do outro lado. Se comunicarmos através de emoções, usando o “eu estou a sentir…” em vez de “és um incompetente”, entendemo-nos melhor porque emoções todos percebemos, é uma linguagem universal. Comunicando de forma correcta, a pessoa do outro lado ficará mais atenta e será mais diligente, em vez de despoletar nela uma reacção negativa. Quando eram agressivos comigo, eu ficava bloqueada e não conseguia resolver o problema.
O que já lhe trouxe a sua comunidade do Instagram?
Muita coisa, mas sobretudo realização pessoal como nunca imaginei. Tinha sempre a impressão que o que eu sabia ou partilhava não ia acrescentar muito, mas percebi que na partilha dou a conhecer coisas que as pessoas não conheciam e vice-versa, é uma troca muito rica. Já me trouxe pessoas com quem agora falo regularmente, da área da gerontologia, o que alimenta novas ideias e conhecimentos, e deu-me oportunidade de falar para alguns públicos, nas escolas, já falei sobre a sexualidade no envelhecimento para estudantes de psicologia. Tenho o meu trabalho a tempo integral e dedico o pouco tempo livre que tenho à página, que é tão natural, parece que já conheço bem as pessoas da minha comunidade. Essa interacção, essa relação de simbiose, em que ambas as partes se alimentam, tem sido muito positiva.
Quais os objectivos de futuro nesta área?
Neste momento, estou a gerir um projecto comunitário com vários eixos de intervenção, um deles é o do envelhecimento, mas como tenho de gerir todos não posso dedicar muito tempo a este último, daí a criação da página para compensar. O que gosto mesmo de fazer é capacitar o público para o contacto e a intervenção com os idosos. Adoro a área da gerontologia, adoro comunicar e formar, desmistificar ideias, falar sobre estes assuntos e gostaria que no futuro o caminho fosse esse.
Sara Ferreira,
Gerontóloga