Não se aceita nem se esquece, sobrevive-se acreditando que agora estão a viver pelos filhos. São pais destroçados a quem sempre faltará uma parte arrancada sem aviso e que sempre voltarão ao conforto dos grupos de entreajuda nas associações que dão espaço ao luto. Nesta reportagem, contrariamos a tendência de silêncio da sociedade e abrimos a comunicação sobre a morte para falar das estrelas que nunca se apagam.
“A dor não passa, mas vai-nos ensinando a viver”, diz Lurdes Abreu, uma mãe que perdeu o filho num acidente de viação. Já passaram 12 anos, mas a data da tragédia nunca se esquece: 21 de Fevereiro de 2000. “Naquela manhã, levantámo-nos, fui preparar o pequeno-almoço e ele disse-me, contente, ‘logo venho mais cedo’. Comeu o que estava na mesa e saiu para trabalhar, eu também saí para o meu serviço. Duas horas depois, vejo a minha filha chegar com uma cara triste e perguntei ‘O que se passa, Mónica?’ e ela respondeu ‘Houve um grande acidente e o Bruno já não está cá’. É o pior momento que uma mãe pode ter”, recorda Lurdes Abreu, de voz embargada. O filho Bruno, de 25 anos, faleceu no local. “Um carro foi contra ele e sofreu uma pancada no fígado e na cabeça. Foi assistido imediatamente por um médico do INEM que por acaso estava perto, mas já não havia nada a fazer. Passaram anos e perdi a conta às vezes que chorei. Tive de aprender a viver sem ele”, afirma.
Ao fim de uma semana, o tempo anteriormente concedido ao luto parental, Lurdes Abreu regressou ao trabalho, onde encontrou algum conforto. “Trabalhava com jovens, estava muito próxima de raparigas e rapazes com a idade do meu filho. Foi doloroso, mas eles ajudaram-me, foram compreensivos, tentavam dar um ar da sua graça, quase que via neles o meu filho, pensava ‘já não tenho o meu filho, mas tenho estes miúdos’. Ter trabalhado logo fez-me bem”, afirma, grata pelos jovens, mas também pela família. “Felizmente, senti-me amparada pelo meu marido, a minha filha e a minha mãe, embora nem todos os parentes foram capazes de dizer algo simpático, muita gente atirava ‘deixa lá isso, já passou’. É difícil não nos deixarem falar sobre os nossos filhos, é muito importante para nós. Nos grupos de entreajuda, encontrei um sítio onde posso falar do que eu quiser”, conta. O grupo que frequentava, na altura, chamava-se Nossa Âncora, e foi pioneiro na abordagem ao luto. “A minha filha levou-me a uma reunião na Igreja do Campo Grande e aquele primeiro contacto foi muito importante porque eu ia completamente destroçada e ao ouvir aqueles pais e mães nas mesmas condições, senti que não estava sozinha. Era um grupo que sofria como eu e lutava como eu para viver da melhor maneira possível”, conta.
Espaço de diálogo e conforto no luto
O papel das associações que se dedicam ao apoio a pais em luto é precisamente esse: ser um espaço de diálogo e conforto sobre um tema ao qual, muitas vezes, a sociedade fecha a porta. A Nossa Âncora acabaria por terminar, mas da sua génese surgiram duas outras respostas. Carlos Céu e Silva, psicólogo e presidente da Laços Eternos – Associação de Apoio a Pais em Luto, nunca pensou abraçar esta causa e mostrou-se inicialmente reticente em aceitar o convite que lhe foi feito. “Quando comecei na Nossa Âncora, foi através de um amigo que achou que eu tinha perfil para acompanhar estes pais. Lembro-me de ir à primeira sessão e sair achando que não iria ficar, era muito doloroso ter de ir mensalmente aos grupos e envolver-me. Em termos profissionais, sempre achei a temática interessante, a questão ‘como se sobrevive?’, não sabia nada sobre o tema, era um leigo na questão do luto; mas quando fui à reunião vi que era tão pesado, 30 pais à volta de uma mesa corrida a partilhar em cada sessão quase 15 casos diferentes. A verdade é que se criou uma empatia e acabei por continuar esse trabalho, agora na Laços”, revela Carlos Céu e Silva, explicando que foi preciso encontrar um equilíbrio entre o trabalho de um psicólogo e as expectativas dos pais. “Há uma ambivalência na forma como olham para os psicólogos. Por um lado, acham um papel muito importante, por outro acham que é um técnico que está a representar um papel e esse papel não é o que eles querem. Muitos já foram acompanhados por psicólogos e as expectativas que têm das respostas que querem ouvir, os técnicos não conseguem corresponder, porque não podemos dar vida aos filhos que perderam”, explica o psicólogo, frisando que o seu trabalho nos grupos de entreajuda é “criar uma relação afectiva e um discurso próximo” dos pais. “Temos de ir aprendendo através da prática e da relação permanente com os pais”, diz.
A Laços realiza uma dezena de sessões mensais, habitualmente presenciais mas muitas passaram para a via digital com a pandemia, espalhadas por vários pontos do país e contendo sempre a presença de uma moderadora, por norma uma das mães do grupo que já fez três ou mais anos de luto, e dos restantes progenitores. São maioritariamente mulheres, diz Carlos Céu e Silva, explicando que “embora os pais sofram tanto como as mães, verbalizam de forma diferente. Quando o pai está sozinho e não está a ser observado, chora, emociona-se e fala com a mesma linguagem das mães, mas numa sociedade como a nossa, a mulher tem uma espécie de direito implícito de verbalizar o papel maternal e acaba por ocupar inconscientemente mais espaço. É uma questão social e cultural que felizmente hoje já começa a mudar”, elucida. Não há quotas obrigatórias, nem os pais são obrigados a partilhar a sua história nem a marcar presença em todas as sessões. Quando chegam à associação – por escolha ou reencaminhamento médico – partilham a sua história com a pessoa que os atende e, se assim o entenderem, integram um dos grupos. Se não optarem por esta via, podem continuar a receber, através da Laços, acompanhamento individual. “Os grupos têm hoje no máximo entre 12 a 15 pessoas, para não se perder o carácter íntimo, e não há uma obrigação de participar ou fidelizar porque este tipo de dor não obriga as pessoas a irem a todas as sessões, fica ao critério delas. A evolução interna é feita de pequenos passos e quando os pais percebem que não estão sozinhos é o grande despertar para a realidade. Muitos não faziam ideia que havia tantos pais e mães em luto, pensam que só lhes acontece a eles”, conta Carlos Céu e Silva.
O psicólogo fica satisfeito quando consegue ver mudanças nos pais que chegam destroçados. “Acho bonito ver a evolução dos pais. Chegam, a primeira vez, sem esperança, sem acreditar que vale a pena continuar a trabalhar ou a olhar para os outros filhos, e ao fim de um tempo percebem que se os outros conseguem rir, falar dos filhos, partilhar os momentos em que estão mais angustiados, sair, jantar fora, passar férias no lugar onde gostariam de ter ido com o filho, eles também conseguem e começam a acreditar na luz de uma vela que não se apaga”, refere. Há datas muito difíceis, como os aniversários de nascimento e falecimento ou as épocas festivas com o Natal e a Páscoa, e a Laços faz o possível para atenuar essa angústia. “Fazemos todos os anos um cartão a lembrar o aniversário e data de falecimento dos filhos, personalizado, enviado por correio, com os desenhos dos filhos que os pais nos cedem. Os pais aguardam ansiosamente para receber estes cartões”, conta o psicólogo, acrescentando que a associação, que no global ajuda mais de três centenas de pais em luto, também tem habitualmente na sua agenda várias outras iniciativas presenciais, que se propõem a recuperar quando “a pandemia serenar”.
Necessidade de amparar os pais
Com ligação à Nossa Âncora, surge também o Grupo de Pais em Luto do Oeste, pelas mãos da psicóloga Alexandra Seabra. “Senti necessidade, ao ver as crianças que chegavam em morte cardiorrespiratória ao hospital e quando tinha de dar as más notícias aos pais, da existência de um grupo de apoio mútuo. Conhecia a Nossa Âncora, uma associação a nível nacional criada por quem tinha perdido filhos, falei com os responsáveis para averiguar a possibilidade de criar um grupo na zona Oeste e chegámos a acordo. Para que não fosse no hospital, onde as recordações são muitas, arranjámos um espaço na Junta de Freguesia”, conta Alexandra Seabra, que mesmo depois do término da Nossa Âncora continuou a levar a cabo esta missão. “A Nossa Âncora extinguiu-se, mas não quisemos desistir. Soube numa manhã e à tarde já tínhamos novo nome: Grupo de Pais em Luto do Oeste”, afirma. As reuniões presenciais de carácter mensal realizam-se ao sábado à tarde, sendo que houve alguns meses em que ficaram suspensas devido aos constrangimentos da Covid-19, não tendo o grupo optado pela via digital. “Os pais telefonam imenso uns aos outros, sentem-se à vontade para isso, mas as reuniões on-line não funcionam, não têm o mesmo impacto, não atingem os objectivos. Os pais têm necessidade de se abraçar, de se sentirem presentes e partilharem histórias, de se conectar”, explica a psicóloga.
Os pais que chegam ao grupo são recebidos pelos membros mais antigos, apresentam a sua história apenas se quiserem e “o processo de integração varia de pessoa para pessoa. Vão partilhando histórias e uns integram-se, outros resolvem o processo de luto e saem, pois os lutos são vivenciados de forma diferente. Eu faço uma apresentação inicial e o meu papel é muito no sentido de compreender a fase de luto em que estão, ir moderando, explicando coisas, tentar compreender sem fazer juízos de valor. O resto deixo a cargo dos pais, que são companheiros uns dos outros, choram, riem, brincam juntos”, afirma Alexandra Seabra, frisando a importância de um espaço aberto para falarem dos filhos. “Gostam de falar dos filhos, querem manter a imagem, a memória, o cheiro dos filhos vivos. Ninguém nos prepara para falar da morte, é um tema tabu, ninguém sabe falar da morte, dão palmadinhas nas costas porque não sabem o que dizer. Os pais gostam de se lembrar ‘o meu filho gostava de cantar, de escrever, dava-me mimos, fazíamos isto e aquilo’, e as pessoas não querem ouvir falar disto”, atira. Para a psicóloga, falar sobre a morte deve ser ensinado. “Nos cuidados paliativos, uma das grandes questões que me colocam é ‘como é que eu vou dizer à minha filha de dois anos que a mãe partiu?’ As pessoas não sabem falar sobre a morte e deve começar-se a falar porque é a única certeza que temos”, salienta.
Carlos Céu e Silva concorda e vai mais longe, deve também incluir-se esta temática na formação dos próprios médicos. “Não tenho a visão derrotista que os médicos e enfermeiros não estão preparados para falar sobre a morte, acho é que estão preparados para fazer viver. São seres humanos que testemunham o sofrimento diário dos doentes que estão a acompanhar e por isso acabam por desviar-se inconscientemente da questão da morte”, explica. Como solucionar? “Nos cursos de medicina e enfermagem, tem de haver mais cadeiras de teor mais humanista, onde se valoriza a questão da morte, porque infelizmente morre-se todos os dias nos hospitais e os profissionais têm de saber como se transmite esta informação e como se lida com ela. O acompanhamento psicológico desses profissionais devia ser uma preocupação do Sistema Nacional de Saúde, nos vários momentos da carreira, porque lidam com muita dor e desespero, esperança e ilusão, há uma série de emoções que estão em jogo quando se entra na porta do hospital, veste-se a bata e vai-se lidar com os doentes. Os profissionais precisam de uma forma de escoar, e não basta o desporto ou a família, é preciso um espaço individual intimista e para isso existe a terapia, onde as pessoas podem falar dos seus fantasmas, medos, pensamentos. Imagino o que se passa na cabeça de um médico ou enfermeiro quando está perante uma pessoa numa situação de desespero profundo, como lida com isso? Como é que assiste à morte de uma pessoa e vai transmitir aos pais e esse enfermeiro é pai? O que é ele pensa quando vai para casa e olha para os filhos? Não basta despir a bata”, frisa o psicólogo.
Investigação e trabalho na área do luto
Num trabalho extensivo sobre o luto, intervém também a APELO – Apoio ao Luto. Fundada em 2004 pelo professor José Eduardo Rebelo, que perdeu ele próprio a família numa tragédia, tem como finalidade prestar apoio “aos diferentes tipos de luto junto de pessoas, famílias e populações enlutadas. Actualmente, integra, conjuntamente com o Espaço do Luto, o Observatório do Luto em Portugal e a Sociedade Portuguesa de Estudos e Intervenção no Luto, um consórcio de instituições dedicadas à temática do luto”, explica a associação à Magafone. O consórcio actua em áreas como: Acção comunitária do Apoio ao Luto, junto de pessoas, famílias e comunidades enlutadas, através de sessões de apoio individuais e de grupos de partilha; Formação, promovendo o Curso de Conselheiros do Luto e diversos workshops, nomeadamente ‘Como Comunicar a Morte’ ou o ‘Luto em Tempo de Pandemia’; Investigação, através do Grupo de Investigação em Estudos Científicos do Luto, desenvolvendo actividades com diversas universidades, nacionais e estrangeiras, sobre temáticas do luto ajustado às idiossincrasias culturais portuguesas; Divulgação, tendo em vista a actualização da perspectiva nacional e mundial sobre o luto, com a realização de congressos e colóquios englobando reputados cientistas internacionais estudiosos do luto; e Editorial, com livros sobre a temática do luto, como ‘O Luto: Vivências, Superação e Apoio’, ‘Defilhar: Como viver a perda de um filho’, ‘Desatar o nó do luto: Silêncios, receios e tabus’ e ‘Amor, Luto e Solidão: na viuvez e na separação conjugal’, de José Eduardo Rebelo.
Os serviços de Apoio ao Luto estão disponíveis, presencialmente, na sede da associação, em Aveiro, e nas suas delegações, em Coimbra, Estremoz e Lisboa, ou à distância, através de atendimento telefónico ou videoconferência. A associação presta ainda apoio gratuito, no âmbito do projecto Elos com Futuro, “a enlutados da comunidade e utentes das Santas Casas da Misericórdia de Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos e Pedrogão Grande, em consequência dos incêndios de 2017, e dinamiza um projecto piloto de capacitação de elementos da comunidade, dotando-os de competências especializadas para o Apoio ao Luto sadio”. A APELO “acompanha o enlutado no caminho de superação da sua perda pessoal profunda” através de Conselheiros do Luto, “os únicos especialistas na acção comunitária do Apoio ao Luto”. Os Conselheiros do Luto têm formação especializada promovida pela associação e acreditada pela Sociedade Portuguesa do Estudo e Intervenção no Luto. “O Apoio ao Luto destaca-se da terapia psicológica ou psiquiátrica pela condição do próprio luto. O enlutado, o único especialista no seu próprio luto, necessita de ser ouvido sem julgamentos no que mais o aflige para descobrir progressivamente o seu próprio caminho de superação da perda”, explicam.
Os grupos de partilha têm frequência mensal, sendo que “cabe a cada pessoa em luto saber qual o momento certo para procurar o Apoio ao Luto e qual a frequência adequada para as suas sessões individuais”. Actualmente, Aveiro e Lisboa são os locais que recebem “maior número de solicitações”, mas ao longo dos seus 17 anos de existência, “a APELO tem acompanhado diversos defilhados, pais em luto, como designou José Eduardo Rebelo, no apoio para os seus lutos”. A associação tem “traçado um percurso no sentido de tornar pública e cada vez mais vasta a disponibilidade em Portugal do Apoio ao Luto especializado para as pessoas deixarem de sofrer sozinhas as suas perdas pessoais profundas”. Como metas, apontam: “consolidar o trabalho de acção comunitária em diferentes regiões, visando alcançar todo o país; tornar o Apoio ao Luto especializado mais amplo através da formação de Conselheiros do Luto; contribuir para a produção de conhecimento científico orientador de boas práticas de Apoio ao Luto; desenvolver projectos de cooperação interinstitucional centrados na temática do luto, nomeadamente no apoio a idosos; divulgar as reacções a perda pessoais profundas como veículo de normalização do luto e das suas implicações sociais; diligenciar para que a problemática geral do luto sadio venha a ser considerada, a nível legislativo, equivalente a um problema de saúde pública”, enumeram.
“Queria tanto abraçar aquela mãe”
“Logo a seguir à morte do meu filho, passados uns dias, houve um caso de uma rapariga que ia para a faculdade e aconteceu-lhe a mesma coisa. Senti tanta vontade de abraçar aquela mãe, de lhe dar um bocadinho de conforto”, diz Lurdes Abreu, que acabou por tornar-se uma das moderadoras da Laços Eternos para ajudar outros pais em luto. “Sou mediadora do grupo de Lisboa. Os pais telefonam e aparecem, nós recebemos antecipadamente, falamos com eles, mostramos que estamos no mesmo barco, embora o nosso luto já seja de muitos anos e as pessoas que chegam vêm num estado lastimável, pessoas que os filhos se suicidam, que morrem em acidentes… Temos de ter sempre uma palavra amiga e tentar chegar a cada um deles, mostrar-lhes que apesar do nosso sofrimento que nunca mais passa, temos condições para continuar a viver”, afirma, tentando que os pais se foquem “nas coisas que lhes interessam para que o tempo vá passando e amenizando”. Admite, porém, que às vezes as histórias dos outros despoletam recordações. “Há dias em que estamos a ouvir os pais e revivemos e ficamos tristes. Há dias em que tenho dificuldade em adormecer. Aquilo comove-me de tal maneira, parece que aconteceu de novo. Mas sinto que devo continuar a ajudar, nem que seja dar um abraço, para alguns é muito difícil dar a volta. Se há pessoas que ao longo do tempo se vão mentalizando e vão procurando actividades que lhes interessam, outras não reagem a nada”, conta.
A viver com uma força ímpar, está Paula Beliz, a única sobrevivente de um acidente de viação na A2 que lhe levou o marido, os três filhos e a mãe. Ficou em mau estado, internada dois meses e a fazer fisioterapia durante dois anos para reaprender a andar e a movimentar-se com facilidade. Do acidente, lembra-se apenas de recuperar a consciência dentro do carro, onde viu “a família a dormir”, e achar estranho “ser a única que estava a ser retirada. Antes do embate, lembro-me de me enrolar para proteger a minha filha mais nova e começar a rezar o Pai Nosso. Depois, tiraram-me do carro, os bombeiros puseram-me um imobilizador de coluna e eu ia perdendo e ganhando a consciência. Pensei sempre que íamos sobreviver àquilo”, afirma. Pouco tempo antes do acidente, o pai tinha falecido e ele tinha sido “a primeira pessoa que viu morta”. Com uma resiliência que nem ela sabe explicar, três meses depois, recomeçou a trabalhar, mudando-se da aldeia para a cidade, “uma mudança radical de vida. Só tinha duas hipóteses: ou ficava parada ou fazia-me à vida”, realça, acrescentando que começou a ler um livro que o marido lhe tinha deixado, escrito pelo Dalai Lama, que a ajudou a “encarar a vida de outra forma”.
Com três anos de luto, Paula Beliz descobriu a Nossa Âncora. “Pertenci durante vários anos ao grupo de Setúbal e representei a associação em muitos eventos. Quando deixou de existir, o grupo continuou a reunir-se. Entretanto, descubri a Laços e, com a pandemia, mantive presença nas reuniões por Zoom. Este ano, convidaram-me para coordenar o grupo de Setúbal”, diz Paula Beliz, que encontrou nos grupos “pessoas que falam a mesma língua. É uma linguagem comum a quem perdeu um filho que não é entendível a quem não passou por isso. Mesmo calçando os chinelos do outro, não conseguimos verdadeiramente saber. Ao escutar o outro, saímos da nossa própria dor e acolhemos a dor do outro”, salienta. A sua forma de estar foi sempre no sentido de “escutar e tentar ajudar. Nas épocas festivas, como agora em Dezembro, é um tempo de recolhimento para muitos pais. A dor engole-os. Eu tenho uma forma diferente de encarar, por exemplo, continuo a comemorar o aniversário como a existência da pessoa, é uma homenagem. Embora exista tristeza, existe gratidão por terem existido. Os amigos disseram que devia esquecer essas datas, mas não podem ser esquecidas, enquanto eu existir as datas de aniversário dos meus filhos são o meu Dia da Mãe. Há o dia de todas as mães, mas cada mãe tem o seu próprio dia, o dia em que nasceram os filhos”, afirma Paula Beliz, consciente que a sua formação de Ciências Naturais lhe permite “ter outro olhar sobre a vida. Na Natureza, as coisas não têm ordem para morrer. Nós não controlamos nada, não existe isso do contranatura, é uma criação nossa, as coisas são como são”, refere.
Sempre empenhada em saber e descobrir mais, Paula Beliz fez, em 2015, uma formação na área do trauma depois de perceber que estava com Stress Pós-Traumático. “Ouvia um zumbido, primeiro pontual, mas que depois se intensificou, perdia o equilíbrio, o sentido de orientação. Num choque, perdemos a noção do espaço, tempo, velocidade, tudo se mistura numa amálgama, e o corpo mais tarde dá sinal que precisa de uma descarga. Fui obrigada a parar”, conta. Decidiu fazer um “retiro de silêncio” que lhe trouxe visíveis melhorias de saúde e, desde então, é uma curiosa sobre as temáticas do stress, ansiedade e mindfulness. “Vi que fazia efeito e acabei por levar o mindfulness às escolas. Vi os resultados nas crianças e quis levar à sociedade. Meditações simples, uma nova forma de olhar a vida, de estar na vida. Era, na verdade, algo que já existia em mim, já sabia que através da respiração podia lidar com a dor, foi assim que tive os meus três filhos sem epidural, apenas com treino de respiração”, recorda. Um caminho que a levou a fundar um grupo de Mindfulness na Laços Eternos. “Ligo o mindfulness à prática de autoregulação do trauma. Todas as segundas-feiras ao final da tarde, por Zoom, pessoas de vários sítios do país reúnem-se para fazer esta prática. Como sobreviventes, temos a memória de todos os que partiram, mas também temos de cuidar de nós, dar um sentido à vida. A minha vida encaminhou-me por aqui”, refere.
Uma terapia que mantém os filhos vivos
Ana Marta Ferreira encontrou a Laços Eternos numa pesquisa na Internet, sendo que já tinha frequentado os encontros da Nossa Âncora anteriormente. “Aquando do primeiro confinamento, que mexeu com todos nós, senti necessidade de voltar”, revela. Para ela, as sessões mensais são como uma “terapia. Uma vez por mês, durante aquelas horas sinto que a minha filha está presente”, revela. A filha, Margarida, teve morte súbita aos quatro meses, deixando para trás os pais e o irmão gémeo. “Eu tinha regressado ao trabalho há cinco dias. Deixei os meus filhos e quando voltei, fui buscar um ao infantário e uma à morgue”, conta, confessando que nem se lembra bem dos meses seguintes. “Não me lembro sequer de ter cuidado do meu filho, estava em piloto automático. Por ele, tinha de me reerguer”, salienta. O pediatra aconselhou-a a procurar ajuda e no hospital deram-lhe o contacto da associação para pais em luto. “Não fui logo, só fui quando senti que estava muito perdida e não conseguia encontrar caminho”, revela.
A primeira reunião deixou-a de pé atrás e pensou em desistir. “Na altura, fui com um casal amigo que também tinha perdido um filho. A primeira experiência não foi muito agradável, lembro-me que a moderadora do grupo tinha perdido as duas filhas e uma delas adorava dançar então ela dizia que ia à discoteca e dançava por ela e aquilo fez-me imensa confusão. Mas acabamos por dar o benefício da dúvida, até porque sentimos que falavam a mesma linguagem que nós. As pessoas, fora deste contexto, não são muito receptivas, dizem-nos ‘já passou, não fales nisso agora’, não sabem lidar e a forma que arranjam é afastar-nos. Mas nós temos necessidade de falar, a maneira de sentirmos que os nossos filhos estão presentes é falar deles”, explica. É a memória deles que ajuda a prosseguir e a “encontrar o prazer da vida nas pequenas coisas. Na altura, é difícil e não conseguimos ver. Temos momentos muito maus, mas os nossos filhos estão lá em cima a olhar por nós, é uma obrigação estarmos bem, eles querem-nos bem. Já fez 14 anos e neste momento consigo ter esta serenidade. Não sou a mesma pessoa, nem me peçam para ser, mas se cá ficamos é por alguma razão”, afirma. Serão sempre mães. Lurdes Abreu gosta de recordar o filho Bruno que “punha toda a gente alegre”, era “brincalhão, fazia partidas aos amigos, e tinha muito jeito para desenho”. Gosta, sobretudo, que a namorada e os amigos continuem a dizer-lhe que se lembram muitas vezes dele. Paula Beliz fala de voz alegre dos três filhos, Tiago, Rita e Joana, e de como a ensinaram a nunca fechar a persiana para que as estrelas lá de cima possam ver os humanos cá em baixo. “Tenho medo que um dia me esqueça, mas acho que já estão em mim. Na rua, quando qualquer coisa me chama a atenção e me faz recordar, nunca fico triste, há um aconchego que me conforta, eles estão sempre comigo. Mantemos as pessoas vivas enquanto nos lembramos delas, enquanto eu existir eles estão vivos”, afirma. Ana Marta Ferreira diz que a filha Margarida, por quem batalhou durante cinco anos de tratamentos de infertilidade, era “linda de morrer”. Gosta de falar dela com o irmão e guarda memórias tão vívidas de “a ter ao colo, de quando ela se ria, de amamentá-la. É um orgulho enorme ter sido mãe dela. Se me dissessem o que ia passar, voltaria a passar. Valeu a pena”.
Equilíbrio entre envolvimento e distanciamento
Testemunhos que emocionam, mesmos os médicos que contactam com casos destes numa base regular, e que despertam empatia. “Um dia, chamaram-me, para dar apoio nas urgências, tinha entrado uma criança de sete anos em paragem cardiorrespiratória. Estava a andar de bicicleta e tinha sido atropelada por uma carrinha. Entrei e estavam a fazer massagem para tentar reanimá-la. Lembrei-me que o meu filho também tinha sete anos e andava de bicicleta. Antes de sermos profissionais de saúde, somos pessoas. Podia ter sido o meu filho”, afirma Alexandra Seabra. Distanciar-se é uma tarefa difícil. “O distanciamento deixa de existir de forma inconsciente. Não deixamos de ser quem somos e de pensar nas pessoas. Não desvinculo o psicólogo da pessoa. Não estou dividido. O que existe, depois, é uma capacidade interna de sair do problema porque não podemos estar a carregar às costas dezenas de pessoas. Quando se acompanha uma pessoa às vezes estamos a acompanhar todos os que estão à volta dela. O distanciamento não é distância, é saber estar presente”, explica Carlos Céu e Silva.
Um envolvimento que levou o psicólogo a escrever o livro ‘Morrer na Ponte’. “O luto pelo suicídio é muito violento, os pais sentem-se culpados, não conseguem encontrar respostas para o porquê dos filhos se terem suicidado, e os jovens retratados no livro, vistos de fora, surpreendem porque eram rapazes que faziam actividades desportivas, tinham namoradas, estavam na faculdade, tinham projectos de vida. O tema do suicídio, em termos profissionais, desperta-me uma forte curiosidade clínica sobre o que nos leva a querer desistir da vida, como é que jovens inseridos socialmente e em actividades comunitárias começam a elaborar internamente o conceito de morte”, afirma Carlos Céu e Silva. A dureza do luto por suicídio para os pais é confirmada pela experiência de terreno das moderadoras dos grupos. “Os casos piores que aparecem são quando os filhos se suicidam. Os pais têm grande dificuldade em aceitar os acontecimentos, ficam sempre a pensar no que poderiam ter feito. Nos casos mais difíceis, contamos com a ajuda do Dr. Céu e Silva, que perdeu uma irmã de quem gostava muito”, diz Lurdes Abreu.
Além dos pais em luto, a Laços Eternos estende também o seu apoio aos irmãos, os filhos que ficaram. “Os irmãos têm um duplo luto. Os pais quando perdem um filho esquecem-se que têm outros filhos em casa que precisam de ser acompanhados. Embora os filhos compreendam, cria-se uma revolta porque vêem que deixam de existir. Os pais não fazem de propósito, obviamente, fazem-no porque não têm energia nem disponibilidade para dar atenção. Deixam eles próprios de existir, de os acompanhar nas actividades e no dia-a-dia, esquecem-se que eles também perderam um irmão. E o filho que fica tem de recalcar os seus sentimentos, não pode falar em casa do que sente. Muitas vezes, os pais entram em situações depressivas tão fortes que os filhos têm de tomar conta dos pais”, explica o psicólogo. É importante, pois, ter um porto de abrigo, como as sessões de entreajuda. “Os pais vinculam-se, têm um pacto silencioso, vivem num mundo que é só deles. Como moderador, promovo que sejam os pais a falar e em função de determinadas deixas que são ditas de forma espontânea ou emocional, pego nelas e vamos desenvolvendo. As sugestões deixo para eles que são os melhores professores, eles sabem como devem ensinar os outros a fazer o que fizeram quando estavam sozinhos em casa a olhar para as coisas dos filhos”, afirma.
Aumento do luto parental de 5 para 20 dias
No dia 3 de Janeiro, entrou em vigor uma nova lei que estende a duração do luto parental de cinco para 20 dias, acompanhado do direito de acompanhamento psicológico dos progenitores. Uma medida que os responsáveis das associações vêem com bons olhos, mas ainda assim insuficiente. “O aumento é positivo, mas mesmo 20 dias não é nada, normalmente os pais põem baixa de um ano, é um processo muito complicado em termos emocionais”, diz Alexandra Seabra. O presidente da Laços Eternos, por sua vez, congratula a medida – “é sempre bom” – mas frisa que os pais precisam de muito mais do que dias de luto. “O mais importante não são os dias. As estradas continuam a ser perigosas e continua a morrer-se nas estradas. O Estado tem de manifestar um olhar preocupado perante a dor de quem perde um filho. É um cidadão que fica doente e esse cidadão precisa de apoio. Os dias são válidos, mas o importante é recebermos dos que decidem por nós uma resposta prática, eficaz, em obras, em educação, em formação, para saber lidar com a dor. Os pais querem ser vistos porque eles ficam invisíveis quando perdem os filhos”, frisa Carlos Céu e Silva.
Uma “realidade muito dolorosa que precisa de ser acarinhada por todos. Há pais que perderam crianças, pais que perderam filhos adultos, pais que perderam filhos num acidente, suicídio, pais que perderam filhos e não viram os corpos, há todo o tipo de fatalidades, histórias humanas muito pesadas de um luto que é eterno e contínuo. Sabemos e conseguimos conviver com o luto, mas o buraco da ausência física de um filho continua sempre por preencher”, refere o psicólogo, salientando que este luto “tem uma carga emocional, sentimental e afectiva muito maior, por isso tem dificuldade em ser cicatrizado. Nem os pais querem cicatrizar essa ferida. O grande pânico dos pais é os filhos ficarem esquecidos, o nome deles deixar de existir, os amigos dos filhos deixarem de telefonar ou de lembrar o aniversário do filho de partiu. É uma necessidade de memória presente que faz com que os pais aprendam a descobrir novas formas para irem vivendo a partir da ausência dos filhos”, diz. À questão ‘como se sobrevive a isto?’, Carlos Céu e Silva deixa uma mensagem de esperança. “Nós, seres humanos, somos capazes de suportar a maior dor e desprezar a maior alegria. Somos plásticos e flexíveis. Vê-se pelo luto dos pais que se consegue sobreviver. Nós temos capacidade para ultrapassar a dor, mesmo esta que é considerada a maior dor do mundo, depende das nossas circunstâncias e do tempo interno de cada um, que não corresponde ao tempo real de quem está fora deste contexto”, afirma.
Paula Beliz faz questão de deixar alguns dos ensinamentos que foi aprendendo e que lhe permitem hoje encarar a vida com o espírito resiliente de uma Fénix. “A vida não é como queremos, é como é, isso foi uma grande aprendizagem, a noção que tudo é relativo. Se aceitarmos o que não controlamos, a vida é simples, não nos deitamos zangados e temos a consciência tranquila. Nós pensamos que a vida é eterna, mas não nos debruçamos sobre o sentido da vida porque temos medo da morte. A morte não escolhe idades e no nosso coração cabem todas as pessoas que amamos, o que nos dá uma grande responsabilidade sobre a vida”, afirma, acabando a citar Alberto Caeiro: “A espantosa realidade das coisas é a minha descoberta de todos os dias. Cada coisa é o que é, e é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra, e quanto isso me basta. Basta existir para se ser completo”.