Maria Couto sente que já viveu “pelo menos umas cinco vidas” nos últimos 10 anos. Tudo começou com um documentário sobre exploração animal que a levou numa viagem de completa transformação de estilo de vida. Rumou ao Brasil, sozinha, de mochila às costas, e foi lá que concebeu a filha, Noá, que já conheceu casas no Porto, Açores, Lagos e agora assentou arraiais na Nazaré. Uma autodescoberta constante desta Mãe Guru.
Os amigos da altura incentivaram-na a ver um documentário que abordava a exploração animal e desde esse “clique”, Maria Couto nunca mais foi a mesma. “Não existe apenas um único clique na nossa vida, vão existindo pequenas chaves que vão rodando e abrindo novas portas. Esse documentário foi um grande clique, comecei a mudar a minha alimentação. Deixei totalmente a carne”, conta, considerando-se então uma “analfabeta” no que toca à origem dos alimentos. “Nem tinha a percepção que a carne moída era parte de um animal. Tendo nascido e crescido numa cidade, somos afastados da realidade natural. Essa distância faz-nos estar adormecidos, a comer em piloto automático, sem saber de onde vêm os alimentos. O documentário teve um papel fundamental na virada”, aponta.
Uma reacção que surpreendeu as pessoas do seu núcleo. “O documentário mexeu com eles, mas eu fui a única que depois tomei a decisão ‘a partir de agora vou mudar completamente a minha alimentação’. Lembro-me de chegar a casa e dizer ‘nunca mais vou tocar em carne’ e as pessoas ficarem exaltadas e preocupadas. Há uns anos esta escolha era muito estranha, eu não conhecia ninguém que fosse vegetariano”, refere. A visualização do documentário coincidiu com o 18.º aniversário e a saída de casa para ir viver sozinha. “Não tinha cozinhado muito até aí, só aqueles pratos básicos como massa com atum. Quando fui morar sozinha, aprendi tudo do zero e comecei a experimentar novos ingredientes que em minha casa não eram utilizados, e aí surgiu uma paixão imensa, um amor pela alimentação. Vai fazer 10 anos desta caminhada e consigo perceber a evolução”, refere.
“No Brasil, tive o primeiro contacto mais profundo com o yoga”
Maria Couto encontrava-se a estudar Design de Moda mas algo a puxou para formações no Instituto Português de Naturologia e foi mais um passo na caminhada que a levou até à sua missão de vida. “Tudo se foi encaixando. Conheci pessoas que usavam linguagens diferentes, falavam de energias, canais meridianos, foi um mundo novo mas que não parecia novo, soava familiar. Inscrevi-me naquela formação sem expectativas e apaixonei-me, fiz depois várias formações dentro daquelas áreas”, lembra. Durante um dos trabalhos que teve, encontrou alguém que a levou para trabalhar na noite algarvia e foi aí, “no meio de bares e festas”, que conheceu “a pessoa que a guiou na sua primeira meditação. O mundo parece que aparentemente não está ligado mas depois desse primeiro contacto com meditação, resolvi ir para o Brasil sozinha e aí começou toda a transformação. Foi no Brasil que tive o primeiro contacto mais profundo com o yoga”, revela.
Porquê o Brasil? “Há coisas que não se explicam, sentem-se”, diz Maria Couto, e com ela tem sido sempre assim, um “chamado. Sempre tive uma ligação especial ao Brasil, embora só tivesse estado lá uma vez de férias com os meus pais. Mas tenho antepassados brasileiros que não conheci. Quando tomei a decisão, sabia que tinha de ir sozinha”, diz. Era para ficar um mês mas acabou por viver no Brasil dois anos, onde conheceu o pai da sua filha, Noá. A relação não acabou bem e Maria viu-se obrigada a regressar com a bebé a Portugal, onde procurou refúgio junto da família no Porto. “Queremos estar tranquilos dentro da intranquilidade que é a maternidade e não há sítio onde me sinta mais segura do que em Portugal”, afirma Maria Couto.
Porto, Flores, Lagos e Índia
O Porto, contudo, não foi casa durante muito tempo. A vida acabou por levá-las para a ilha das Flores, nos Açores, e depois para Lagos, no Algarve. As constantes mudanças fizeram com que que fossem apelidadas de “nómadas. Nunca almejei ser nómada, mas as coisas foram-se proporcionando. Estava no Porto e comecei a perceber que queria dar um contacto mais cru e simples com o campo e a Natureza à minha filha, uma oportunidade que eu não tive de uma vida mais tranquila. Surgiu a oportunidade de ir para as Flores, nunca lá tinha ido, e depois o Algarve sempre foi um local que vibrou bastante comigo”, conta. No Algarve, começa a puxar um novo destino, mas desta vez bem mais distante. “A Índia começou a puxar e eu senti que era o próximo passo”, lembra.
Uma decisão “fácil de tomar. Os sinais estavam a aparecer. Não tínhamos condições para ir e depois as condições proporcionaram-se. Mas isso não quer dizer que não tenha pensado muito sobre a viagem, pensei como nunca. Sempre fui de me aventurar, sem reservas, viver o dia como se fosse o último, mas como tinha a Noá fiz seguro de saúde, levei medicamentos, reservei sítios, falei com pessoas que já tinham estado naqueles locais… Tentei saber o máximo de opiniões e dicas naquela que foi um tipo de viagem completamente diferente da que eu faria sozinha ou se não fosse mãe”, explica Maria Couto. Para a pequena Noá, foi tudo muito “natural. Ela ficava tão entusiasmada. O avião aterrou na Índia e ela, com dois anos, dizia alto ‘Índia, Índia’. Nunca tínhamos estado na Ásia, descobrimos um mundo completamente novo”, afirma. A Mãe Guru acredita que “desde que o progenitor esteja bem, enraizado, a criança também está bem, não importa se é numa casa, numa cabana, num templo”.
A experiência de viver num ashram durante dois meses foi desafiadora mas recompensadora. “Dormimos no chão e tomámos banhos de água fria, mas fomos mais felizes do que nunca. Ela apenas estranhava acordar às 4h e ainda estar de noite”, conta, rindo. Uma “experiência incrível” da qual tem “muito orgulho. Ainda bem que segui a voz do meu coração e lhe proporcionei essa experiência. Quando cheguei à Índia disse-lhe ‘foste tu que me trouxeste aqui’ porque ela estava muito familiarizada com a cultura”, garante Maria Couto, lembrando como os indianos ficavam surpreendidos com a satisfação com que Noá comia no ashram. “Eles ficavam tão admirados, diziam ‘nunca vimos uma criança ocidental comer com tanto prazer a nossa comida’, coisas inclusive que eu duvidava que ela fosse comer por serem picantes, mas ela estava muito à vontade, fez amizades com crianças de todo o mundo, sem falarem, porque a linguagem não é necessária nestas idades. Uma experiência extremamente enriquecedora e a repetir”, diz Maria Couto.
Natureza é “a maior escola”
Da Índia, voltaram para Portugal e assentaram definitivamente arraiais numa quinta da Nazaré. Lá, Maria e Noá têm um contacto directo com a terra. “Reconhecer agora com a minha filha as folhas dos brócolos, das cenouras, para mim antes era impensável. É dos maiores presentes que lhe posso deixar como herança, este contacto com a Natureza, que engloba tudo. Ela conecta-se com a lua, fazemos fogueiras, temos uma horta, apanhamos tomates e fazemos o nosso próprio molho, uma ligação tão directa, tão crua…”, diz Maria, emocionada. Até a mudança das estações é diferente no campo. “Nunca tive uma noção tão exacta das estações do ano. Vê-se perfeitamente a mudança de cada estação, não só pelo clima mas pelo que a Natureza oferece, é a maior escola”, diz.
Os dias são passados entre aulas pontuais de yoga e meditação, prática espiritual e cuidado da Noá e da casa, sendo que Maria Couto tem sempre imensos projectos na balança, incluindo o Mãe Guru, página onde partilha os seus ensinamentos sobre yoga, meditação, alimentação e um pouco do dia-a-dia com a filha, já completamente integrada nesta filosofia de vida. “A primeira aula de yoga que dei foi com ela, é uma linguagem muito natural para a Noá. Inclusive, as últimas aulas presenciais que dei, notou-se que tem cada vez tem mais gosto em participar, fazer ajustes e até faz os mantras em sânscrito. As alunas estavam impressionadas com ela mas a verdade é que ela cresceu a ouvir mantras, a ver-me a dar aulas de yoga. Eu percebo um gosto dela em estar, tocar, ajudar, e agora diz que quer dar aulas de yoga e estamos a fazer uns vídeos para o Instagram”, conta, adiantando que Noá até já deu uma aula de yoga aos colegas de escola.
A alimentação é um dos temas que geram mais curiosidade e perguntas nas suas redes sociais e Maria Couto faz questão de explicar que “desde que a Noá começou com alimentação sólida aos seis meses, nunca fez uma comida diferente para as duas. No início, parei o sal e em compensação usava bastantes especiarias. Existe o mito que as crianças não podem comer especiarias, mas é precisamente o contrário. Claro que não vamos fazer uma comida extremamente picante nem pôr todas as especiarias de uma vez, mas a criança pode e deve comer o mesmo que o seu progenitor”, salienta. Muitos dos problemas que os pais têm na hora de alimentação dos filhos, diz, derivam precisamente de não cumprir esta premissa. “As famílias dizem que os filhos têm muitos problemas para comer e quando analiso existe uma diferença do que se come. Os pais comem algo que não é saudável e querem que os filhos comam algo saudável e ainda por cima muitas vezes comem em horários diferentes. É importante que a criança veja os pais no momento de nutrição porque a alimentação é muito mais do que tapar buracos”, aponta.
Sonho de vida: tiny house
Desde que viu aquele primeiro documentário até hoje já passaram 10 anos e Maria Couto sente que viveu “mais de cinco vidas”. Em Janeiro de 2022, quer voltar aos retiros, uma necessidade de “mergulhar em vivências mais profundas” onde consegue incluir todo o foco do seu trabalho e ajudar a “ver chaves e a abrir portas”. Está, também, a desenvolver um jogo, que vai ser lançado até ao final do ano, e do qual apenas adianta que “será especialmente para pessoas que querem passar bons momentos e aprender com eles”. Todos os lucros do jogo serão para investir num grande projecto de vida: construir uma tiny house. “Ainda no Brasil, quando estava grávida, comecei a pesquisar comunidades para viver. Percebi como eram feitas as casas, completamente diferentes do que eu conhecia até então, autossustentáveis, com colecta de água da chuva, banheiro seco, coisas que eu nunca tinha ouvido falar e ficou o bichinho”, conta.
Quando voltou para Portugal, conheceu uma tiny house na ilha das Flores, “construída por uma rapariga estrangeira que tinha vindo para Portugal. Inspirou-me, ela vivia imersa na Natureza, numa casa lindíssima construída por ela, por um carpinteiro e um artesão”, diz. No Algarve, conheceu um casal alemão que também construiu um tiny house a partir de dois contentores e hoje trabalham nessa área de desenho e construção de casas. “Quando entrei dentro de uma, fiquei abismada e disse ‘quero algo assim para mim”, revela, lembrando que nesse momento “teve a certeza que iria lutar por algo assim. Quero deixar isso à Noá e mostrar às pessoas que existem outras formas de vida. Às vezes, achamos que precisamos de um empréstimo de 100 mil euros para comprar uma casa que, no final de contas, nunca é nossa, porque basta falharmos 2/3 meses de prestação e ficamos sem ela. Há 10 anos, pensar que ia morar numa tiny house era impossível, mas hoje faz sentido porque vai de encontro àquilo em que eu acredito e ao meu estilo de vida”, afirma.
Já está a dar passos para isso e, quem sabe, no futuro, a tiny house será vizinha de tantas outras num conjunto de famílias a viver em comunidade. “Muitas pessoas não sabem mas temos em Portugal a maior e mais antiga comunidade da Europa, Tamera, e outras comunidades de Norte a Sul do país, umas mais públicas, outras mais privadas. As pessoas certas para isto vão aparecer, acredito neste novo formato de vida”, salienta Maria Couto, apontando que “hoje em dia, as pessoas não conhecem o seu vizinho e a vida social que têm é para fugir a questões internas. Para mim, faz sentido a vida em comunidade, na Índia funcionava assim. Cada um vivia na sua casa mas havia um centro onde as pessoas se encontravam para cozinhar, almoçar, estudar, tinha biblioteca, eventos de yoga, qigong. Todos partilhavam a sua missão e dom para que em comunidade se cresça em conjunto”, diz Maria Couto. A Mãe Guru ambiciona, sobretudo, “viver com verdade. A partir da verdade, vem tudo. Estamos aqui para sermos a melhor versão de nós mesmos, o único lugar que não está ocupado é o nosso. Devemos seguir o coração, independentemente do que os outros dizem, porque cada indivíduo é único, tem um processo único, uma missão única”, afirma.