O Museu do Holocausto do Porto abriu em Abril e em poucas semanas ultrapassou os 5000 visitantes. Jovens, sobretudo, interessados em conhecer mais a fundo uma realidade que não devemos “Nunca Esquecer”. Seguindo o repto deste programa governamental e acompanhando a entrada de Portugal na Aliança Internacional da Memória do Holocausto, a Comunidade Judaica do Porto apresenta um espaço que “não é só um Museu”, nas palavras do seu curador Hugo Vaz, mas sim um memorial desta tragédia que dizimou milhões de vidas e destruiu permanentemente a amplitude da cultura judaica.
Shoah. Em hebraico, significa Holocausto e este é o tema central do novo Museu que abriu portas na cidade do Porto em Abril. Com protocolos de cooperação com outros museus do mundo sobre esta temática, em que se incluem Washington, Moscovo, Hong Kong e Jerusalém, diferencia-se pela visibilidade que dá ao papel do Porto no acolhimento dos judeus refugiados. “A grande novidade é o facto de o Museu ligar o tema à nossa cidade através dos refugiados que por aqui passaram durante a 2.ª Guerra Mundial. O Porto foi porto de abrigo para milhares de refugiados”. A comprová-lo, a documentação inédita, exibida ao público pela primeira vez, nas paredes do Museu, que mostra as fichas individuais de quem entrava no país procurando amparo. “Conhecemos muito bem o apoio que Lisboa, Ericeira, Figueira da Foz deram mas nada sobre o Porto e a realidade é que a Comunidade Judaica do Porto tinha documentação que nos fala das pessoas que por aqui passaram, do apoio que receberam, de onde dormiram, em que data saíram do país”, revela o curador. Há, inclusive, logo à entrada, a possibilidade de visualizar o filme ‘A Luz de Judá’, do realizador Luís Ismael, que aborda a história da comunidade judaica no Porto desde a época medieval até aos nossos dias, retratando a chegada dos refugiados à cidade Invicta.
“Não estamos a falar de números, estamos a falar de pessoas que tinham as suas vidas, sonhos, casas, famílias, objetos, e de um momento para o outro… desaparecem”
O Museu divide-se pela dicotomia vida-morte-vida, apresentando a comunidade judaica e suas rotinas antes do Holocausto, entrando depois nas “paredes negras da morte”, como descreve Hugo Vaz, e regressando ao verde esperança no final, o renascimento. Há vida pós-Holocausto? Há, mas pelos arames farpados perderam-se seis milhões de judeus e com eles parte da cultura que nunca mais se recuperará. “Os 32 mil nomes nesta parede representam os seis milhões de vítimas do Holocausto, nem Portugal tinha esse número populacional na altura. Dos seis, só se conhecem 4,5 milhões de vítimas. Ainda se procura o 1,5 milhão que falta, provavelmente nunca se encontrará”, diz Hugo Vaz, olhando a sala ‘Remember’ onde o negro do espaço contrasta com os nomes a branco de todos os que já cá não estão para contar esta história. “É um memorial que nos convida ao silêncio e à reflexão. Não estamos a falar de números, estamos a falar de pessoas que tinham as suas vidas, sonhos, casas, famílias, objetos, e de um momento para o outro… desapareceram”, afirma, rematando: “80% da população judaica da Europa desapareceu. Só em 2021 é que chegamos ao mesmo número de judeus que existia em 1933. Demorou todos estes anos a recuperar numericamente a população e parte da nossa cultura perdeu-se para sempre”. Lembra por exemplo as línguas, o iídiche, uma mistura de polaco, alemão e hebraico, ou o ladino, que junta português, espanhol, grego, turco e hebraico, hoje consideradas “línguas mortas”, apenas faladas em meios específicos e ensinadas nas universidades.
5000 visitantes em apenas três semanas
Mais do que a fachada com a palavra ‘Recordar’ em caracteres hebraicos, o Museu do Holocausto do Porto guarda o seu impacto para a entrada que recria Auschwitz-Birkenau. Os carris desenhados no chão, que nos remetem para os comboios a abarrotar com passageiros forçados, a imagem dos portões do campo em grande plano e, ao olhar para cima, a frase ‘Arbeit Macht Frei’, significando O Trabalho Liberta. “Dos seis campos de extermínio, este foi o que matou mais judeus. A maioria das pessoas nunca sequer ouviu falar dos outros campos de extermínio. Auschwitz-Birkenau fez 1,100 milhões de vítimas”, afirma Hugo Vaz. As pessoas “sentem” esta dimensão, garante o curador, satisfeito com a frequência de visitas em poucas semanas de abertura. “Chegámos às 5000 pessoas em três semanas, desde a nossa inauguração a 5 de abril. Não estávamos à espera porque ainda não há turismo, as escolas não têm visitas de estudo, mas a verdade é que as pessoas vieram e algumas de sítios distantes. Tivemos filas à porta que chegavam a 1 hora de espera e o que mais surpreendeu foi que 80% dos visitantes eram jovens, dos 15 aos 25 anos, sem pais nem professores, que vinham por iniciativa própria”. Um bom sinal, acredita Hugo Vaz. “Vêm visitar um Museu com um tema como este… isso toca-me. Volta e meia critica-se a juventude, mas eu tiro-lhes o chapéu, afinal os jovens até têm sensibilidade, a mensagem está a ser passada”.
“Espero que este Museu contribua para deixar a semente da tolerância em todas as pessoas que por aqui passarem”
A mensagem é clara: “Nunca Esquecer”. Este foi o repto do programa governamental em memória do Holocausto que convidava a sociedade civil a contribuir para esta memória e foi isso que a Comunidade Judaica do Porto, que idealizou esta obra, fez com o Museu do Holocausto. Há recriação das camaratas exíguas onde dormiam os prisioneiros dos campos de concentração, há mapas com os números da população judaica pelo mundo antes e depois do Holocausto, há fotografias, tantas, da vida e costumes de uma população que sorria em comunidade até sofrer um extermínio que envolveu fuzilamentos, câmaras de gás, fornos crematórios e as derradeiras marchas da morte. A pergunta que se impõe é: porquê os judeus? “Podíamos estar aqui o dia inteiro…”, diz Hugo Vaz, explicando que o anti-semitismo teve várias frentes. “A frente religiosa, de que o judaísmo matou Jesus; a frente económica, com a ideia errada que os judeus são mais ricos do que os outros; a frente da educação, porque os judeus estavam na academia; a frente da raça, que não faz qualquer sentido porque os judeus não têm características físicas específicas que os distingam”. Hugo Vaz aponta, inclusive, meia dúzia de fotografias e atira “Se eu lhe pedisse para identificar quem é judeu nestas fotos, não conseguiria, porque são fotos de famílias que em nada são diferentes de qualquer foto de família tradicional”. Nas palavras do curador, “sempre que existe uma minoria, ela não é conhecida e a ignorância leva à violência contra um determinado grupo, violência essa muitas vezes fundamentada em mitos”.
Experienciar o Museu “sem artifícios”
Assim, a principal missão do Museu do Holocausto é “combater o anti-semitismo, o ódio contra qualquer grupo, independentemente da sua religião ou nacionalidade. Espero que este Museu contribua para deixar a semente da tolerância em todos os que por aqui passaram”, diz o curador. Por ser um espaço de homenagem, o registo fotográfico do espaço pelos visitantes é absolutamente interdito. “Um dos grandes problemas hoje, em vários sítios, com Auschwitz à cabeça, é o dessacralizar do espaço, à custa das selfies, num espaço onde milhares de pessoas perderam a vida. Não estamos apenas e só num Museu, onde é expectável que se siga a lógica informática dos QR Code, este museu também é um Memorial e é importante respeitar a santidade do local”, sublinha Hugo Vaz, que acredita que se consegue mais facilmente “beber” o Museu “se não houver artifícios” a distrair-nos. “Beber” o Museu através dos textos que nos levam pela história do Holocausto e “beber” o Museu pelas pessoas, portugueses, que contribuíram para que a tragédia fosse um pouco menor. “Muitos refugiados passaram por Portugal com vistos do Aristides de Sousa Mendes. O Museu pretende honrar as vítimas mas também aqueles que, sem nada a ganhar, pelo contrário, com tudo a perder, salvaram judeus, os chamados Justos entre as Nações, título dado aos não judeus que salvaram judeus durante a 2.ª Guerra”, diz Hugo Vaz. Aristides de Sousa Mendes é a figura mais relembrada pela quantidade de judeus que salvou, mas existem outros: o diplomata Sampaio Garrido, o humanitário José Brito-Mendes, e, no epicentro, o vice-reitor do Pontifício Colégio Português em Roma, Padre Joaquim Carreira, que arriscou a vida acolhendo no colégio vários judeus. “Felizmente tivemos homens bons que fizeram muito”, afirma Hugo Vaz.
A visita começa com os símbolos judaicos – Hanukkiah e Torás – aprisionados por arame farpado e acaba com o candelabro de nove braços livre no final da exposição. “Finalmente, e que assim continue este e todos os outros”, diz Hugo Vaz. O curador garante que todo o Museu foi desenhado em estreita colaboração com os membros da Comunidade Judaica do Porto, “muitos deles descendentes de pessoas que foram de alguma forma tocadas pelo Holocausto, familiares que desapareceram ou sobreviveram. Temos testemunhos na primeira pessoa, é importantíssimo reter estes registos, os sobreviventes estão a desaparecer, é a lei da vida, daqui a 10 anos provavelmente não teremos sobreviventes em qualquer país do mundo, e com estes registos impedimos que o negacionismo do Holocausto cresça”, afirma Hugo Vaz. Para isso, contribui também o trabalho de investigação em curso sobre o caminho dos refugiados que chegaram ao Porto, assim como futuras acções planeadas para o espaço. “O Museu serve como ponto de partida para futuras exposições e temos cursos de formação para educadores relacionados com o Holocausto. Um dos objectivos deste Museu é também educar os educadores, aqueles que no futuro transmitirão esta informação”.