Três nutricionistas. Três visões. Três planos alimentares distintos caso decidíssemos entrar em cada um dos seus consultórios. A nutrição é, assim, uma ciência evolutiva e não exacta que depende muito do profissional que a pratica e da formação e experiência que acumulou. Numa conversa cândida e aberta com Mafalda Pinto Oliveira (MPO), Mariana Silva Oliveira (MSO) e Sara Moreira (SM), falou-se sobre dietas restritivas, sobre Paleo e intolerâncias alimentares e sobre as emoções que podem tornar a comida num vício difícil de controlar. Não faltou nada, nem o orçamento que as opções saudáveis ainda implicam.
O que é uma alimentação saudável?
MPO Uma alimentação saudável é aquela em que, acima de tudo, há equilíbrio. Sabemos que certos alimentos devemos consumir mais e outros menos, mas tem de haver um equilíbrio entre estes dois. Agora fala-se muito, também, em sustentabilidade, o conceito de saudável vai aproximar-se do que todos podemos fazer em prol das gerações futuras.
MSO Trata-se, em termos da aplicação da nutrição, da nossa capacidade de escuta, de perceber o que a pessoa precisa para se sentir equilibrada e feliz. Nós não conseguimos comer bem se não nos sentirmos felizes. Tentar colocar a pessoa dentro de um parâmetro daquilo que nós consideramos ser saudável do ponto de vista físico não faz sentido. A nutrição é a ligação à outra pessoa com um intermediário que neste caso somos nós.
SM Costumo dizer que é aquilo que consegue garantir a saúde da outra pessoa a todos os níveis. A parte sustentável está muito em voga, a procura por dietas vegetarianas está a disparar, são cada vez mais as pessoas à procura desse regime alimentar e que querem transitar, mas também há pessoas que se colocam restrições alimentares exageradas e assumem comportamentos alimentares desadequados. As pessoas quererem cortar tudo, experimentar todas as modas e nós, nutricionistas, temos quase de fazer um trabalho de filtragem de informação porque as pessoas estão sempre a ser bombardeadas com informação sobre a parte alimentar e acabam por não saber o que devem comer, como devem comer, o que devem priorizar. Nós, nutricionistas, temos um papel muito importante de ensinar às pessoas como filtrar essa informação e tentar ao máximo prevenir doenças através da parte alimentar.

“Muitas vezes os nossos produtos que são tão saudáveis acabam por se perder face a tudo aquilo que é estrangeiro e novo e que acaba por ganhar importância”
Quais são os riscos das dietas altamente restritivas?
MSO Desequilíbrio emocional, perda de crenças, perda de processos de inculturação. Estamos cada vez mais a perder as bases da nossa gastronomia, a usar palavras como bowl, muesli e granola e esquecemo-nos dos mingaus, das papas, que têm a ver com a nossa genealogia. Tem impacto directo ao nível das gerações porque a alimentação é um legado, é um património, e nós temos essa responsabilidade. As nutricionistas são injustiçadas porque as pessoas partem do princípio que só fazemos emagrecimento, que não fazemos trabalho cultural com fundamento. A indústria alimentar não é o demónio, ela é o que o consumidor pede, o demónio somos nós.
SM O mercado ajusta-se ao que vamos dizendo e divulgando.
MSO As pessoas fazem um esforço brutal pela sustentabilidade mas depois pedem palhinhas nos pacotes. Quem lê estudos do consumidor, vê o ridículo que é a preferência pela unidose, esquecendo-se a dinâmica do impacto nutricional, o que vai no prato, a simplicidade das coisas.
SM Muitas vezes nas consultas, independentemente do objectivo, as pessoas dizem “vou dizer o que como ao pequeno-almoço mas já sei que me vai tirar” e estamos a falar, por exemplo, de um pão que fazem em casa. Há aquela ideia de que o pão engorda, mas se for uma granola cheia de açúcar do supermercado está tudo bem. Muitas vezes os nossos produtos que são tão saudáveis acabam por se perder face a tudo aquilo que é estrangeiro e novo e que acaba por ganhar importância.
Porque é que a dieta mediterrânica é considerada como aquela que traz uma maior qualidade de vida?
SM Hoje em dia quase nenhum português cumpre a dieta mediterrânica, especialmente as gerações mais novas.
Uma grande dieta da moda é a dieta Paleo, já apareceram nos vossos consultórios a pedir um plano alimentar deste âmbito?
MPO Agora já nem tanto, mas houve uma altura em que foi um boom. Na nutrição é assim, sai um livro sobre o Paleo, sobre o leite, sobre o que for, e exponencia. O que sabemos sobre a dieta do paleolítico é o chavão “comer como os ancestrais” mas depois esquecem-se que a farinha de amêndoa não existia naquela altura. As pessoas misturam conceitos, querem tanto uma verdade absoluta mas ela não existe. Existe uma alimentação adequada para cada um de nós, não existe uma regra que dá para todos. Estamos a pôr tudo num cesto e a desvalorizar outros factores.
MSO Tem uma filosofia interessante de respeito pela ancestralidade mas perde as estribeiras pela forma como é aplicada e por onde o Marketing a levou.
“O conceito de fome emocional está sobrevalorizado, não pode ser menosprezado, mas deve ser correctamente diagnosticado”

Um dos grandes flagelos do nosso tempo é a fome emocional. Contra a fome emocional, que armas utilizar?
MSO Não temos ferramentas para poder classificar inteiramente a chamada fome emocional, esse trabalho não nos pertence. O nosso trabalho consiste na escuta activa, em tentar responder às questões emocionais de uma forma integrada, com o que a alimentação pode oferecer. Se conseguirmos garantir felicidade, necessariamente vamos ter um impacto emocional positivo. Esse é o nosso trabalho. Felizmente, não sabemos o que é fome fisiológica, estamos muito ocidentalizados, temos acesso à água, que é um nutriente. O conceito de fome emocional está sobrevalorizado, não pode ser menosprezado, mas deve ser correctamente diagnosticado. Tudo agora é fome emocional.
Como se gere a relação afectiva das pessoas com a comida?
SM Essa ligação deve continuar a existir. A pessoa tem de gostar do que está a comer porque senão mais cedo ou mais tarde não dá bom resultado. A pessoa tem de se sentir bem, faz parte ir a uma festa de aniversário e comer o bolo se lhe apetecer. Estamos precisamente a perder um dos princípios da dieta mediterrânica, que é o convívio à mesa. Hoje vemos pessoas que se recusam a comer uma fatia de bolo de aniversário e depois em casa sozinhas acabam por comer um balde de pipocas inteiro. Não nos compete a nós, nutricionistas, avaliar as causas por detrás, apenas dizer o que a pessoa deve comer, em que quantidades, ajustar às suas preferências. Se a pessoa não consegue cumprir, se todos os dias come grandes quantidades de comida porque usa a comida como um refúgio, então temos de encaminhar para um psicólogo ou psiquiatra, porque aqui a comida está a tornar-se um vício e se a alimentação se torna um vício, se a pessoa não tem fome mas não consegue controlar a quantidade que come, chegando a ficar mesmo mal-disposta, é compulsão alimentar e já nos ultrapassa, já não é competência do nutricionista ajudar.
Mas no caso da comida, quando comer se torna um vício, é mais complicado de gerir porque, ao contrário de outros vícios, não se pode deixar completamente de comer. O equilíbrio é mais difícil de encontrar?
MSO O importante é perceber o motivo do gatilho. O sistema aditivo segue um padrão. As pessoas vão lidar com demónios a vida toda. É uma marca, a forma como se lida depende de quão bem a pessoa consegue encontrar um substituto que traga a mesma resposta de neurotransmissores, emocional e psicanalítica, é um trabalho integrado. O nosso trabalho é no sentido de encontrar uma boa resposta entre a escuta e a articulação, é o cimento entre as pedras. Hoje em dia temos uma oferta de mercado que nos permite facilmente fazer um bolo saudável; mas no caso, por exemplo, do tabaco não existe um substituto saudável. Com a comida dá para controlar, negociar.
Deve-se apelidar os alimentos de bons e maus e proibir alimentos?
TODAS NÃO!
MSO Só no caso de alergias alimentares.
MPO Ao rotularmos uma coisa dessa forma, estamos a criar uma imagem na cabeça da pessoa. Enquanto nós nutricionistas sabemos a composição exacta daquele alimento, a pessoa muitas vezes não sabe, só sabe que faz mal à saúde e isso pode gerar uma imagem tão negativa que potencia desequilíbrio. Cada vez que come certo tipo de alimento que estava proibido, sente culpa e vai tudo ao encontro da parte emocional. As pessoas não têm qualquer base de nutrição, estamos a criar conceitos que podem durar a vida toda e gerar uma péssima relação com a comida. Tentamos não criar rótulos, mas sim articular e negociar, nunca vamos proibir qualquer alimento, tem de haver equilíbrio.

“A comida tem de ser vista como o dinheiro. Se a pessoa trabalha um mês completo, não faz sentido proibir-se de gastar cinco euros ao final do mês”
Que alimentos são imperativos num bom plano alimentar?
SM Há uma pergunta que eu faço sempre aos meus clientes que é: que alimentos gosta de comer? Em 80% dos casos, esses alimentos permanecem no plano alimentar, apenas calculamos as quantidades que a pessoa pode comer. Tudo depende se há doenças subjacentes. Se elas não existirem, tudo é possível. É possível calcular o chocolate para poder comer todos os dias. A questão é perceber se a pessoa é capaz de comer as quantidades que calculamos para ela. A comida tem de ser vista como o dinheiro. Se a pessoa trabalha um mês completo, não faz sentido proibir-se de gastar cinco euros ao final do mês. Essa ideia é completamente descabida. A mesma coisa com a alimentação. Não tem de comer direitinho a semana toda. Podem e devem existir momentos em que vai comer um gelado ou vai comer a casa dos pais. O que não pode fazer é gastar mais dinheiro do que está a ganhar, isso dá mau resultado. Ou seja, não pode comer todos os dias e sistematicamente fritos, doces, refrigerantes, porque a conta vai chegar, mais tarde ou mais cedo ela chega. Se as pessoas pensarem assim não pensam que estão proibidas disto ou daquilo, que é o que acaba por gerar uma má relação com a comida. Dito isto, as frutas e legumes são a base de qualquer plano alimentar.
Dito isto, tendo em conta a vossa experiência como nutricionistas, se pudessem abolir um alimento que os vossos clientes mais consomem, qual seria?
MPO Não há um padrão, depende do género e da idade, mas as bolachas mais calóricas talvez serão as mais comuns e um padrão excessivo em certas pessoas. Nos homens, diria mais o álcool.
MSO Tento evitar ao máximo tudo o que seja ultraprocessado, como fiambre. E minimizar a proteína animal, mas tem a ver com o público com que eu trabalho, trabalho com doenças metabólicas, com o reaprender a comer. Tudo o que seja ultraprocessado, tento retirar, a minha prioridade é que a pessoa aprenda a fazer uma sopa e a tirar uma peça de fruta da fruteira.
SM Vou dizer um que tenho constatado nos últimos meses: caldos concentrados de gordura que normalmente são utilizados pelas pessoas que não sabem cozinhar. Utilizam em tudo: sopa, arroz, frango assado e isso é daquelas coisas que não faz bem a nada. Aí o meu trabalho não é só excluir, é fazer a pessoa perceber do que aquilo é feito e porque faz mal à saúde e depois substituir por especiarias e ervas aromáticas.
MPO O facto de muitas pessoas não saberem cozinhar é um espelho do que é a nossa educação. Na escola não aprendemos sobre nutrição, sobre finanças, e o que está a ser feito agora, com as hortas nas escolas, é excelente para haver uma associação entre o que é e para que serve.
É ou não mais difícil para uma pessoa que não sabe nem gosta de cozinhar seguir um plano alimentar?
MPO Hoje em dia, a indústria já oferece muita escolha. Pode ser mais desafiante encher o frigorífico, mas não é mais difícil. Se a pessoa não gosta de cozinhar, não precisa de perder muito tempo a fazer uma boa refeição.
SM Eu acho que depende se existe família perto e depende da situação financeira da pessoa. Existem sim opções saudáveis no supermercado mas o custo delas é mais elevado do que se optar por cozinhar em casa. Uma pessoa que tem apenas 30€ para se alimentar durante um mês é difícil se não cozinhar em casa.
“Muitas vezes constatamos que existem deficiências nutricionais que se prolongam por terem excluído grandes grupos alimentares de forma descabida e dessa restrição podem gerar-se intolerâncias alimentares”

Não é um pouco contraproducente, se queremos incentivar uma alimentação saudável, que essas mesmas opções sejam muitas vezes mais caras?
MSO O que é saudável restringe-se à simplicidade, ao alimento, e nesse sentido a alimentação saudável continua a ser económica.
SM Discordo. Uma vez um cliente disse-me que um pacote de bolachas Maria fica ao mesmo preço de uma maçã e com esse pacote ela alimentava a família toda durante uma semana. É difícil contra-argumentar com isto. As pessoas têm é de fazer o raciocínio de “como é que a indústria consegue disponibilizar este alimento tão barato?”, imaginem do que ele é feito. É difícil, principalmente nas grandes cadeias comerciais, termos preços mais acessíveis de frutas e legumes. Às vezes, indico aos meus clientes onde podem comprar esses alimentos de forma mais económica, como em mercearias, feirinhas locais.
As intolerâncias alimentares sempre existiram e não se falava tanto sobre elas ou são resultado da evolução dos alimentos que consumimos?
SM Eu diria que há mais redes sociais (risos) Há pessoas que nos chegam à consulta excluindo por iniciativa própria grupos de alimentos. Nós perguntamos “mas sentia-se mal quando comia, fez algum exame?”, e a resposta é não, simplesmente ouviu alguém a dizer que fazia mal. Muitas vezes constatamos que existem deficiências nutricionais que se prolongam por terem excluído grandes grupos alimentares de forma descabida e dessa restrição podem gerar-se intolerâncias alimentares. Por exemplo, no caso dos lacticínios, se passamos anos sem comer iogurte ou leite é provável que quando os queremos reintroduzir já não tenhamos enzimas no nosso intestino que façam a digestão dos açúcares do leite e já não vamos digerir bem. Tudo isto provocado por termos deixado de comer sem nada que justificasse essa exclusão. O glúten, por sua vez, a maioria de nós se comer glúten não passa mal e consegue tolerar bem o trigo. Há outras alternativas, mas daí a excluirmos completamente este cereal vai um grande passo.
A nutrição é uma ciência evolutiva? Há alimentos que há anos eram considerados saudáveis e hoje já não o são?
MSO Como qualquer outra ciência, tem de evoluir e ainda bem.
MPO Actualmente, estuda-se mais a ciência da nutrição do que nunca. Nos últimos anos, houve um acréscimo gigante de investigação, não conseguimos ler os documentos todos que saem. Haver demasiada informação faz com que a ciência possa às vezes ser contraditória mas no fundo está sempre em evolução.
SM Hoje arranjamos quase estudos para tudo, muitos com interesses por trás, sem grupos de controlo, e isso faz com que tenhamos de explicar às pessoas como é que aquele estudo foi feito, dizer que há muitos estudos a dizer o contrário e não que não é por haver o estudo em questão que vamos considera-lo e excluir tudo aquilo que aprendemos antes.
Uma ciência evolutiva mas não é uma ciência exacta, certo? A mesma pessoa, com o mesmo corpo e metabolismo, se se deslocar aos vossos três consultórios sairá de cada um deles com um plano alimentar diferente?
SM Seria estranho se acontecesse o contrário.
MPO Como nutricionistas, o paciente absorve aquilo em que acreditamos e que praticamos. Os meus próprios planos evoluem. Claro que o foco é no paciente mas eles absorvem um pouco de nós também, logo isso faz da Nutrição uma ciência não exacta.
SM Depende das formações que fazemos e da própria realidade. Há uns anos era impensável para mim colocar nas recomendações dos planos alimentares uma refeição vegetariana por semana e hoje é algo que tento incutir nas pessoas. É uma forma diferente de desafiar a pessoa a comer sem incluir carne ou peixe, indo ao encontro da actual preocupação com a preservação do meio ambiente. Pessoas diferentes têm formas de pensar diferentes. Mesmo estudando na mesma faculdade, com os mesmos professores, aprendendo a fazer planos alimentares da mesma forma, vamos moldando a nossa actuação profissional. Hoje há pessoas a quem eu não prescrevo planos alimentares porque sei que se os prescrever a pessoa nem sequer vai olhar para aquilo; enquanto há outras que se eu não prescrever a pessoa quase que quer escrever no livro de reclamações porque pagou para sair com um plano na mão. E depois depende das culturas, o povo brasileiro está habituado à toma de suplementos alimentares, se não os incluímos começam a ficar aflitos.
Há uma grande proximidade entre nutricionista e cliente?
MSO Muitas vezes, encontramos alguém na rua e tiram-nos uma dúvida ali mesmo e eu digo “não sei de cor o seu plano” e a pessoa fica confusa “é só uma pergunta”. O que eu respondo é “vamos encarar a comida como um medicamento, que tem horas, quantidades”. As pessoas encaram o ir à nutricionista como um tratamento e não como uma educação alimentar.
MPO Eu costumo dizer aos meus pacientes que vêm a uma mini-aula, não podem estar à espera de querer saber tudo de repente, vão demorar muitas consultas a aprender as coisas básicas. Às vezes, mandam-me mensagens a perguntar “posso comer isto?” e não têm noção que eu tenho de ir ver o plano deles para perceber onde vou colocar aquilo, em que quantidade, se faz sequer sentido. Para eles é uma pergunta, para mim são 15 minutos de trabalho. Não imaginam o trabalho que está por trás de responder a o que eles acham que é uma simples mensagem de Whatasapp.
MSO Se fizermos a comparação, nunca por sombras iríamos mandar um Whatsapp ao médico a que acabámos de ir. Portanto, estamos a criar uma abertura e uma proximidade perigosas, cria facilitismo na área, as pessoas não têm consciência que trabalhamos 12h e que quando chegamos a casa temos a nossa vida e não queremos andar a responder a mensagens de Whatsapp.
SM Cabe-nos a nós explicar porque não conseguimos responder naquela hora e qual é exactamente o nosso trabalho. Tudo o que fazemos é calculado ao pormenor, refeição a refeição, se eu tirar este alimento agora obriga-me a calcular novamente o plano alimentar. Não é só um pormenor, é fazer o trabalho todo de novo. A minha hora é muito cara, já faço trabalho social grátis nas redes sociais. Todas trabalhamos imensas horas, tentamos ir além do nosso trabalho, contribuir para a sociedade mas as pessoas têm de perceber qual é o âmbito do nosso trabalho como nutricionistas e a importância que ele tem.