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Os riscos dos ecrãs para a saúde, especialmente a das crianças, começam a entrar no espectro do conhecimento dos pais, mas são poucos aqueles que compreendem verdadeiramente os impactos que as continuadas horas oferecem ao nível do desenvolvimento de competências, motricidade e visão. Num mundo invadido pela utilização multifacetada das novas tecnologias, é difícil controlar tempos de exposição e conteúdos visualizados, mas que mundo é este em que os pais deixam os telemóveis e os tablets sem controlo mínimo nas mãos dos filhos? As crianças são o futuro e, alertam os especialistas, é preciso reflectir sobre que futuro lhes estamos a deixar.

Os estudos multiplicam-se sobre uma temática que a maior parte de nós conhece apenas pela rama ou, pior, escolhe não conhecer. Uma realidade apenas possível porque os ecrãs, sejam eles de televisão, tablet, computador ou telemóvel, estão tão entranhados nas nossas vidas diárias que é praticamente impossível imaginar a vida sem eles. Para alguns pais, são bóias de salvação depois de dias atarefados que proporcionam algumas horas de sossego quando os filhos pedem atenção. Mas os estudos sobre os riscos da continuada exposição a ecrãs vão-se multiplicando, a nível internacional e nacional, e embora ainda existam médicos que desdramatizem a questão, alguns começam a levantar a voz, dentro das instituições para as quais trabalham, sobre a importância de trazer mais luz sobre esta temática ainda pouco visível devido à máquina de vendas que lhe está subjacente.

Vejamos os factos. Em 2020, a televisão continuava a ser o equipamento mais popular na visualização de conteúdos em Portugal, segundo a investigação da Universidade de Coimbra denominada “Desigualdades sociais entre as crianças portuguesas em ecrãs de dispositivos tradicionais e emergentes: um estudo transversal” publicada na revista científica BMC Public Health. A investigação concluiu que as crianças portuguesas passam muito mais horas em frente aos ecrãs do que aquilo que é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela American Academy of Pediatrics. 73,1% das crianças entre os 3 e os 5 anos passam mais de 60 minutos por dia em frente a um ecrã durante a semana, valor que dispara para 93,7% ao fim-de-semana. Já nas crianças entre os 6 e os 10 anos, 33% passam mais de duas horas por dia durante a semana em frente a um ecrã e 88% ultrapassam este valor ao fim-de-semana. Neste estudo realizado pré-pandemia, demonstrou-se que o tempo passado em frente aos tablets tem vindo a aumentar e que as crianças de famílias mais desfavorecidas passam mais horas em frente aos ecrãs do que as restantes.

Atrasos no desenvolvimento da linguagem da criança

O estudo – que teve por base um universo de 8430 crianças dos 3 aos 10 anos de idade, inseridas em escolas públicas e privadas das cidades do Porto, Coimbra e Lisboa, através de questionário aos pais nos anos de 2016 e 2017 – reforça a associação entre o maior tempo passado em frente aos ecrãs com “atrasos no desenvolvimento da linguagem da criança, havendo até indícios de que excesso de tempo em frente a ecrãs pode reflectir-se em comportamentos mais agressivos e violentos. De um modo geral, crianças com maior tempo de exposição a ecrãs têm um risco aumentado de um menor bem-estar, e a obesidade, depressão e ansiedade também têm sido associadas ao uso das novas tecnologias, como os smartphones. Estudos como estes incitaram as autoridades a recomendar limites de uso diário de ecrãs para as crianças: menos de uma 1h por dia para crianças entre os 2 e os 5 anos e menos de 2h por dia para crianças mais velhas. A American Academy of Pediatrics recomenda ainda que os pais desenvolvam um plano familiar de media específico para cada família e cada membro familiar. No entanto, a nível mundial, ainda existe uma significativa proporção de crianças que não seguem o tempo recomendado de visualização de ecrãs”, lê-se no estudo, que recorda ainda que “o uso frequente de dispositivos móveis tem tendência para aumentar o isolamento social da criança e prejudicar oportunidades de interacção social com a família e amigos”.

O tempo dedicado à televisão, seguido do tablet, foi o que consumiu mais horas – a maioria das crianças dedica mais de 1h por dia àquele equipamento primordial – começando já aos 3 e 4 anos de idade a usar ecrãs numa base diária (91 e 96 minutos de televisão por dia). O tempo e utilização dos ecrãs aumenta progressivamente com a idade das crianças, facto que poderá estar relacionado com o aumento da popularidade das novas tecnologias, a quantidade e a diversidade de ecrãs nos núcleos familiares. Outros estudos referenciados por esta investigação mostraram, inclusive, que nos EUA a maioria das crianças tem o seu próprio tablet aos 4 anos, que 3 em 4 crianças usa dispositivos móveis numa base diária e que fotografias e vídeos são os conteúdos mais visualizados em dispositivos touch-screen. “Perto de 77% de crianças com 6 anos de idade ou mais usam dispositivos electrónicos por mais de 2h numa base diária, o que pode reduzir significativamente a sua saúde física e psicossocial”, alerta o estudo.

Agravamento de sintomas de saúde mental, irritabilidade, ansiedade e hiperactividade

Os estudos sobre esta problemática continuam a surgir. O Journal of Development & Behavorial Pediatrics concluiu, em “Utilização de dispositivos electrónicos móveis associada com atraso substancial na linguagem em crianças com 18 meses”, que por cada 30 minutos adicionais de utilização diária de dispositivos móveis estavam associadas maiores probabilidades de atraso na linguagem. O JAMA Pediatrics apresenta uma análise sobre a correlação do sono, exercício e ecrãs em crianças e jovens, concluindo que nos EUA apenas 5% dos estudantes de liceu praticam o tempo recomendado de horas de sono, actividade física e tempo de ecrãs. Outro estudo, intitulado “Associação entre Tempo de Ecrã e Desempenho da Criança num Teste de Desenvolvimento”, refere que a exposição a conteúdos em vários tipos de ecrã está associada a atrasos no desenvolvimento de capacidades linguísticas e sociais, recomendando que bebés com menos de 18 meses não tenham qualquer contacto com ecrãs. “Tempo excessivo de ecrã pode prejudicar a capacidade da criança se desenvolver de forma natural; é recomendado que os pediatras e profissionais de saúde guiem os pais no tempo apropriado de exposição a ecrãs e discutam as possíveis consequências de um uso excessivo”, refere o estudo, sublinhando a “associação directa entre o tempo de ecrã e o desenvolvimento da criança, recomendando planos familiares de media e gestão de tempo de ecrã para contrabalançar as potenciais consequências do seu uso excessivo”. Em Dezembro do ano passado, outro estudo canadiano apontava ainda uma associação entre níveis mais elevados de utilização de ecrãs e o agravamento de sintomas de saúde mental, irritabilidade, ansiedade e hiperactividade nas crianças, mesmo que os ecrãs sejam utilizados na escola.

Como se tudo isto não bastasse, temos ainda de considerar outras consequências. Num artigo escrito pelo presidente da Associação de Profissionais Licenciados em Optometria, Raúl de Sousa, lemos que “a utilização de ecrãs afecta (e muito) a visão das crianças”, sendo “natural o surgimento de sintomas tais como astenopia, hiperemia, secura ocular, desfocagem transitória e diplopia. Há evidências suficientes para estabelecer uma correlação entre a baixa exposição ao ambiente exterior, a limitação a actividades aí realizadas e o desenvolvimento da miopia. Assim como há evidência que relaciona directamente o comprimento axial do olho e progressão da miopia com a aproximação excessiva dos dispositivos aos nossos olhos e com o tempo que despendemos em frente deles”, aponta. A elevada incidência da miopia nos jovens já está classificada pela OMS como epidemia, atingindo 80% das crianças em alguns países. “É um problema de saúde pública que requer limitação do tempo de utilização destes equipamentos”, diz o profissional no artigo, recomendando que “a cada vinte minutos de fixação, se realize uma pausa de 20 segundo fixando um objecto a seis metros” para permitir que “a acomodação relaxe e recupere”. Além disso, o profissional aconselha diminuir o brilho e aumentar o contraste dos dispositivos electrónicos para um maior conforto ocular e redobrar a frequência do pestanejo para aumentar a lubrificação.

Também os psicólogos clínicos não deixam de alertar para o risco da utilização de ecrãs por crianças. Rosário Carmona e Costa disse, em entrevistas anteriores, que o problema está no “uso não controlado ou desadequado. O digital tem aspectos extraordinários, aproxima culturas, possibilita-nos olhar para os outros na sua diversidade. Tudo isto deve entrar na vida de qualquer um de nós como mais uma coisa, não pode ser a coisa. Tenho um adolescente que joga, mas também tem de fazer desporto, estar em família, com os amigos”, salienta. Já Teresa P. Marques descreve, num artigo, um cenário perigoso. “É fácil imaginarmos um jovem em frente a um ecrã, com uma garrafa de refrigerante ao lado e um pacote de batatas fritas. Esta inactividade é meio caminho andado para o surgimento de complicações de saúde como obesidade, diabetes e problemas de postura. Muitos queixam-se de dores nas costas e, quando os médicos vão explorar os motivos, percebem que passaram horas sentados sempre na mesma posição”, aponta. Para a psicóloga, é sobretudo chocante que “60% dos pais não têm controlo sobre o uso da tecnologia dos filhos e 75% dessas crianças estão autorizadas a ter equipamentos electrónicos no quarto. Em 2012, o Boston College realizou uma investigação na qual demonstrou que 75% das crianças entre os 9 e 10 anos sofriam de privação de sono. Não é raro que os mais pequenos fiquem acordados até muito tarde e depois não se consigam levantar de manhã ou que acabem por ir para a escola ensonados. De facto, a exposição à televisão e aos jogos electrónicos parece afectar bastante o sono de crianças e, por conseguinte, contribuir para a diminuição do desempenho cognitivo. Estes resultados corroboram, então, a hipótese de existir uma influência negativa destes equipamentos sobre o sono de crianças, a aprendizagem e a memória”, realça.

“As crianças até aos 2 anos têm uma plasticidade neuronal em desenvolvimento”

Pediatra e coordenadora da Unidade de Desenvolvimento do Centro de Estudos do Bebé e da Criança no Hospital de Dona Estefânia, Sílvia Afonso é uma das vozes activas na discussão sobre o impacto dos ecrãs na saúde das crianças. Em entrevista à MAGAFONE, recorda uma investigação que iniciaram pré-pandemia no serviço que integra relativa ao uso de ecrãs em crianças com perturbações no neurodesenvolvimento. “Queríamos fazer a comparação com crianças saudáveis, mas tivemos dificuldade em arranjar um grupo de controlo. Depois entrou a pandemia e a realidade dos ecrãs mudou de forma substancial. Na altura, tínhamos a percepção que as crianças com perturbações no neurodesenvolvimento usavam mais ecrãs do que as crianças saudáveis, mas agora deve estar igual”, comenta. Sílvia Afonso constata na sua prática diária como médica que a maior parte das crianças excede o tempo de exposição aos ecrãs recomendado pela American Academy of Pediatrics e lembra o motivo para estas recomendações que se prende com “o perigo dos ecrãs interferirem no neurodesenvolvimento, nomeadamente no desenvolvimento da linguagem e agravamento de sintomas de isolamento nas crianças com perturbações do espectro do autismo. As crianças até aos 2 anos têm uma plasticidade neuronal em desenvolvimento e isso faz com que determinados estímulos possam interferir no neurodesenvolvimento. Os ecrãs dão um estímulo visual e estamos a estimular uma área em detrimento de outras, como a comunicação, a linguagem, a socialização. As crianças quando estão a ver um ecrã não estão a interagir, ficam passivas. O bebé aprende a falar na interacção com a mãe, a dualidade mãe-bebé é o que promove a linguagem, e os ecrãs não fazem isto. Os pais usam os ecrãs para hipnotizar os meninos e para eles ficarem quietos, mas a criança tem necessidade de mexer nas coisas, de levar à boca, de explorar o mundo, o que não acontece quando está em frente a um ecrã”, realça.

A pediatra mostra-se curiosa para ver as consequências que irão resultar dos confinamentos devido à Covid-19 em que os pais ficaram em teletrabalho e as crianças estiveram mais tempo na companhia de ecrãs. “Acredito que os ecrãs vão ter um maior impacto nas crianças do que as máscaras”, afirma. O grande problema não está apenas no uso dos ecrãs, mas na forma como são utilizados. “Podemos usar ecrãs para jogos de palavras, para fazer linguagem aumentativa, mas isso só resulta se tiver alguém que ensine a criança a fazê-lo”, explica. Uma utilização que deve ser, por isso, acompanhada e nunca levada a cabo perto da hora de dormir. “O uso excessivo dos ecrãs está associado a uma pior qualidade do sono e a principal razão tem a ver com a luz. Para adormecermos, precisamos de melatonina. Os ecrãs têm uma luz azul que inibe a produção de melatonina e isso causa dificuldade em adormecer. Está provado que diminuem o tempo total de sono e aumentam o tempo para adormecer”, salienta. A televisão no quarto, a existir, tem de estar “desligada à noite. Os ecrãs dentro do quarto deviam ser proibidos. Se os tiverem, desliguem-nos 1h antes de ir dormir”, aconselha.

“O grande problema dos conteúdos é verem coisas que não percebem”

Sílvia Afonso não embarca na teoria de que os conteúdos violentos contribuem para desenvolver padrões agressivos, mas frisa que conteúdos excitantes não devem ser visualizados antes de dormir porque interferem com o sono e, sobretudo, “as crianças pequenas quando vêem um filme na televisão devem estar acompanhadas por alguém que lhes explique o que está a acontecer para não ficarem assustadas. O grande problema dos conteúdos é verem coisas que não percebem”, explica. Mesmo no tempo em que lhes é permitido aceder aos ecrãs, “o ideal é que vejam coisas com os pais e depois conversem sobre elas para aproveitar o conteúdo. Mesmo nos jogos é bom que haja supervisão. O computador deve estar numa sala para toda a gente ver o que estão a aceder. Há coisas muito perigosas na Internet, jogos que não são adequados para certas idades, e os pais devem estar atentos, ver com quem falam. Os pais têm obrigação de ensinar literacia para o uso de ecrãs”, frisa, compreendendo a dificuldade em limitar horas de exposição. “Quase ninguém cumpre as recomendações em termos de horários, mesmo nas crianças mais velhas há um consumo exagerado de ecrãs, os jogos são altamente aditivos, feitos para o consumo, é fácil perder a noção”, comenta.

Banir, para Sílvia Afonso, não é uma hipótese. “Proibir não resulta, é muito difícil dizer a uma criança ou adolescente que não pode jogar, seria um extraterrestre no meio dos amigos. Deve estabelecer-se regras, horários para o jogo, e assim consegue-se controlar o risco da adição que vem do facto de deixar as crianças sem supervisão em frente ao ecrã. E temos de perceber quando há algo que não está bem, se a criança acorda a meio da noite para ir jogar, se sempre que está em casa quer ir jogar, se inventa para faltar à escola para poder jogar… algo de grave se passa. Há muita coisa que os pais podem fazer, mas essencialmente é acompanhar”, reforça. Da mesma forma que antes os pais controlavam as companhias dos filhos, hoje “os ecrãs são as companhias. Não custa nada saberem os jogos que jogam, com quem falam, ficar um pouco a assistir, mostrar curiosidade, jogar com eles. De uma forma simples, controla-se um pouco e evita-se problemas mais graves”, sugere. E explicar-lhes os riscos. “Faz parte da educação, dizer-lhes quando podem usar, porque não podem usar demais, quais são os riscos”, acrescenta.

“As pessoas trabalham muito e há coisas que escapam ao controlo”

Os pais, garante, vão estando “mais sensibilizados” para esta realidade. “É uma preocupação que vamos falando em consulta. As pessoas trabalham muito e há coisas que escapam ao controlo porque as crianças estão muito tempo sozinhas e os pais chegam cansados e não têm grande tempo. Temos de fazer os pais verem a importância desta temática. A criança não precisa de ver televisão sempre que chega a casa, os equipamentos devem estar sempre nos espaços comuns, os irmãos podem controlar a utilização dos equipamentos entre eles”, enumera, sobre a relevância dos “pequenos pormenores que fazem toda a diferença. Estar fechado num quarto com acesso à Internet num computador pode dar aso a que a criança pesquise coisas muito perigosas”, alerta. Num mundo ideal “conseguir-se tirar todos os ecrãs era óptimo”, mas no mundo em que vivemos é “praticamente impossível. Até aos 6 anos, pode haver um grande controlo, o pior é a pré-adolescência e a adolescência”, atira.

A luta é contra uma indústria já bastante estabelecida. “Os ecrãs têm uma vertente comercial e publicitária. Existem muitos jogos para bebés e no entanto os bebés não devem usar ecrãs. Se as crianças tiverem coisas para fazer fora dos ecrãs, não ficam muito tempo nos ecrãs. Elas estão nos ecrãs porque os pais não as levam a brincar na rua. Se criarmos condições para as nossas crianças irem para a rua, não para actividades organizadas como a ginástica ou natação, isso é trabalho para as crianças, mas sim para brincarem livremente, com pedras e paus, desenvolvem-se muito mais”, garante Sílvia Afonso. Nos países nórdicos, apesar das condições atmosféricas por vezes mais adversas, as crianças brincam no exterior, diz a pediatra, mas em Portugal, assim como em muitos países, há “medo. Em primeiro lugar, os pais trabalham horas de mais, passam metade do dia em trânsito, quando chegam a casa estão cansados, sem paciência, e ao fim-de-semana só querem descansar. Depois, temos muitas regras para os parques infantis, os baloiços são todos iguais, o espaço é pequeno, não dá para correr nem jogar à bola, há poucos sítios em que as crianças possam simplesmente correr ou brincar ao que lhes apetecer. Ao pé de casa, a cidade encheu-se de carros e não é seguro, as crianças podem ser atropeladas, alguém pode levá-las, parece tudo muito difícil”, diz, simpatizando com os pais.

Sílvia Afonso revela que no serviço onde trabalha tentam estudar os impactos dos ecrãs para abrir a discussão sobre a temática. “Isto não se resolve com radicalismos, ‘agora não se pode usar ecrãs’, as pessoas reagem mal, temos de saber como usá-los, com pequenos truques, com educação, vai demorar tempo, mas temos de fazer ver os riscos que existem se não usarmos de forma comedida, com regras, com horários. Por exemplo, os meus filhos sabem que o dia de jogar é à sexta-feira, e os amigos deles também sabem. Temos de estabelecer limites. E no fim-de-semana há outras coisas para fazer, não é ficar o fim-de-semana todo a jogar”, atira. Sobre os próprios pais não darem o exemplo, também eles agarrados ao ecrã, há que fazer a distinção do que é trabalho e do que não é. “Temos de adequar à realidade. Um pai em teletrabalho tem de estar ao computador”, afirma. Em caso algum, o ecrã deve ser utilizado em substituição da atenção da mãe ou do pai. “Nunca se deve usar a tecnologia para calar, porque o que se está a fazer é a hipnotizar e isso é absolutamente errado. Deve usar-se outras formas de tranquilizar a criança para prevenir a adição, senão a criança fica tão habituada ao ecrã que quando ficar ansiosa e nervosa vai querer sempre e cada vez mais. Nas horas das refeições, se se começa cedo a pôr um ecrã à frente porque a criança não gosta de comer ou porque come devagar, isso não vai resolver, só vai piorar”, alerta. Como conselho, Sílvia Afonso recomenda que “quando a criança está muito agitada, se perceba o porquê, o que a está a incomodar, se quer atenção, conversar, ouvir uma história. O ecrã não substitui os pais”, realça.

‘Agarrados à Net’ traz soluções para lidar com gestão do tempo on-line

Para os pais que já estão com a cabeça à roda com tanto alerta, podem respirar um pouco. Há soluções para gerir este problema do século XXI e o projecto ‘Agarrados à Net’ oferece algumas. Tito de Morais e Cristiane Miranda são dois especialistas, ele na área da informática, ela do coaching, que trabalham de perto com crianças e jovens e a sua utilização dos equipamentos e plataformas digitais. A ideia para esta iniciativa conjunta partiu de Cristiane Miranda que estava num convívio com amigos e viu um casal a colocar um telemóvel a reproduzir um vídeo do Youtube em frente à bebé de 8 meses na hora da refeição. “Aquilo inquietou-me, ela só tinha 8 meses, àquele ritmo quando tiver 3 anos não come sem ecrã e quando chegar à adolescência não sai do computador para ir para a mesa. Nós conhecemos várias histórias de pais que têm de levar a comida ao quarto porque senão os jovens não comem e isto é preocupante, especialmente porque a hora das refeições é um dos melhores momentos para os pais interagirem e conversarem com os filhos. O projecto nasceu destas nossas conversas sobre o uso seguro da Internet”, explica Cristiane Miranda.

‘Agarrados à Net’ começou em Novembro do ano passado e desde então tem levado a cabo várias actividades, on-line e presencialmente, para envolver pais e jovens. “Sentimos que era interessante desenvolver um projecto na área do bem-estar digital, focando as questões que se ligam ao uso excessivo. Não podemos negar os benefícios que estas tecnologias trazem, mas tem de ser tudo com conta, peso e medida”, refere Tito de Morais. Todos os meses há um webinar com uma temática e um especialista diferente, já contando no projecto com nomes como Daniel Spritzer, que falou sobre o gaming, Marlene Cunha, que abordou os jogos de tabuleiro, e Eduardo Jorge, que elucidou sobre o cérebro adolescente e os impactos do uso excessivo de ecrãs. Neste momento, decorre o ‘21/7 Challenge – 7 passos para uma parentalidade digital positiva’, orientado por Cristiane Miranda, e no final de Abril começa um curso onde vão aprofundar a temática ‘Como Gerir o Tempo On-line dos Teus Filhos’. Para os próximos meses, têm previstos webinars com Michael Rich, do Boston Children’s Hospital, e Evelyn Eisenstein, da Sociedade Brasileira de Pediatria.

Sensibilização e não culpabilização

“A experiência com os workshops tem sido bastante positiva, verificamos que a questão da utilização excessiva é um problema que os pais sentem e para o qual procuram soluções”, conta Tito de Morais. O webinar sobre jogos de tabuleiro foi precisamente realizado com o intuito de proporcionar uma alternativa aos ecrãs até porque “os filhos por norma gostam de jogar com os pais porque estão todos no mesmo patamar. Hoje os jogos são completamente diferentes, existem por exemplo jogos cooperativos, em que todos ganham ou todos perdem, e acabam por aumentar as competências socioemocionais dos jovens”, explica Cristiane Miranda. Há actividades que, inclusive, usam ecrãs para fugir dos ecrãs. “O geocaching pode ser praticado em família, usando um dispositivo com GPS que leva a conhecer os locais por onde passamos, como uma caça ao tesouro. Usa-se ecrãs para sair da frente dos ecrãs”, afirma Tito de Morais. Tudo para responder à pergunta mais colocada pelos pais. “Os pais não sabem o que fazer com os filhos fora do ecrã. Não se trata de puxar as orelhas aos pais, mas sim dar-lhes a percepção do que se pode fazer. Uma das mães no último workshop disse-nos ‘daqui levo mais responsabilidade e menos culpa’ e é muito isso. Não estamos aqui para culpar ninguém, mas sim para dar dicas e formas de lidar com a situação”, explica Cristiane Miranda.

Até porque os ecrãs têm uma componente altamente aditiva. “Uma das coisas que falamos é o que é que estas tecnologias têm que nos prendem. A culpa não é só dos jovens e nossa, como pais, que também ficamos presos. As tecnologias estão feitas para nos prenderem lá, ganham com isso”, diz Cristiane Miranda. “As crianças são exploradas, através das vulnerabilidades existentes no seu cérebro que ainda não está completamente desenvolvido, pela indústria on-line, muito através dos chamados padrões negros, que existem para nos manter agarrados às tecnologias. Nós identificamos, nas nossas formações, duas dezenas de padrões negros, alguns que podem ser desabilitados, mas outros que nem sequer dão essa possibilidade. É importante percebermos que eles existem para não sermos manipulados por eles”, elucida Tito de Morais. Padrões como, por exemplo, a reprodução automática no Youtube ou na Netflix que faz com que “em vez de ver 1 episódio, vejamos 10 ou uma temporada inteira. É o chamado visionamento em massa, que constitui um dos problemas actuais, com as crianças a ficarem até tarde em frente aos ecrãs, o que tem implicações ao nível do sono e, consequentemente, ao nível do aproveitamento escolar”, apontam.

Não é um problema tecnológico, é comportamental

Muitos pais ainda pensam que isto se trata apenas de um “problema tecnológico. Os pais perguntavam-me ‘que software posso instalar para bloquear isto ou aquilo?’ e isso mostra que as pessoas vêem a protecção das crianças on-line como uma solução tecnológica. Isto não é um problema tecnológico, é um problema de comportamentos”, frisa. “Até podemos proibir, mas os miúdos vão para a escola e lá têm acesso. É importante os pais acompanharem, terem conversas francas, estarem abertos ao diálogo para perceberem o que eles estão a fazer”, frisa Cristiane Miranda. Eles próprios admitem que cometeram muitos erros com os filhos ao longo dos anos, mas é precisamente essa experiência que hoje constitui uma mais-valia nestas formações. “Uma das razões que nos leva a fazer estes workshops é porque os nossos filhos deram-nos muito calo, cometemos muitos erros e esses erros ensinaram-nos muito e agora podemos partilhar essas experiências e ajudar outros pais a não cometerem os mesmos erros”, afirma Tito de Morais. “Quem me dera saber na altura o que sei hoje, mas não vale a pena olhar para o passado com os olhos do presente”, refere Cristiane Miranda.

Sobre limites ao tempo de utilização de ecrãs, ambos realçam que o importante é o conteúdo que está a ser visualizado. “Se há coisa que os estudos nos indicam é que isto vai para além do tempo de utilização porque por si só não é indicador. Eu posso estar 1h a fazer scroll no Facebook e isso é prejudicial ou posso estar a fazer uma actividade on-line, como um Sudoku ou um Wordle. O que estão a fazer com aquele tempo? Uma actividade que acrescenta ou que está a privar de outras coisas?”, questiona Tito de Morais, alertando os pais para que estejam atentos. “No nosso workshop ‘Que pais digitais somos?’, fazemos a pergunta ‘Sabes quem o teu filho acompanha na Internet e o que essa pessoa diz?’ e é preocupante a quantidade de pais que dizem que não fazem a mínima ideia do que os filhos fazem on-line”, aponta Cristiane Miranda. A Internet, diz Tito de Morais, “é uma ferramenta de dois bicos e este projecto procura fazer o equilíbrio entre aspectos positivos e negativos para proporcionar bem-estar digital. Muito do problema da utilização excessiva é derivado de algum afastamento dos pais relativamente à utilização que os filhos fazem e à própria utilização que os pais fazem destas tecnologias”, sublinha. Não ajuda quando os pais proíbem os telemóveis à mesa, mas eles próprios os têm com eles ou quando estão com a televisão ligada a ver futebol durante a refeição. “Um dos focos do projecto são as soluções. Fala-se muito dos problemas, mas queremos dar soluções às pessoas”, conclui Tito de Morais.

Jogos de tabuleiro são alternativa aos ecrãs

Ainda sobre os jogos de tabuleiro, falámos com Marlene Cunha, responsável do Salta da Caixa, uma empresa dedicada a estas ferramentas educacionais e lúdicas. “Acreditamos que os jogos de tabuleiro modernos são uma excelente ferramenta para a promoção do convívio e do estreitamento dos laços familiares e, em consequência disso mesmo, podem ser uma alternativa aos ecrãs”, diz Marlene Cunha. O projecto surgiu da “paixão de uma família pelos jogos de tabuleiro modernos. Em 2020, na sequência da pandemia, ao ficarmos fechados em casa, percebemos que os jogos de tabuleiro tiveram um papel fundamental na dinâmica familiar”, conta a empresária, que criou então a loja on-line de jogos de tabuleiro, acessórios e puzzles. “Para além do factor lúdico, os jogos de tabuleiro permitem aproximar quem os joga, porque se passa tempo à volta de um objectivo comum, todos regendo-se por um conjunto pré-determinado de regras, competindo entre si e desligados do mundo virtual das tecnologias. Além disso, os jogos podem ser excelentes ferramentas do desenvolvimento do raciocínio matemático, lógico e estratégico, mas também de competências sociais como a cooperação, empatia, criatividade e pensamento crítico”, enumera.

No Salta da Caixa, trabalham apenas com os jogos de tabuleiro modernos que se “distinguem dos tradicionais por serem jogos que procuram minimizar o impacto do factor sorte, apostando mais na relevância da estratégia. Outro ponto fundamental é que são jogos com um tempo de partida determinado, ou seja, podemos escolher o jogo que se adapte ao tempo que temos disponível e não existe eliminação precoce de jogadores”, explica Marlene Cunha, interessada em jogos que “cativem as crianças e sejam interessantes quer para elas, quer para os adultos que com elas jogam. A diversão partilhada é, sem dúvida aquilo que mais marca”, salienta. Compreende a dificuldade dos pais em limitarem o tempo de ecrãs especialmente em pandemia. “As tecnologias estão muito presentes no nosso dia-a-dia e os ecrãs foram fundamentais para mantermos contactos e rotinas escolares durante os confinamentos. Sentimos que facilitamos mais o acesso aos ecrãs durante esse tempo, o que causou alguns momentos de frustração e irritabilidade depois do seu uso mais prolongado”, revela sobre a sua experiência pessoal. Como sugestão às famílias, incentiva a que “procurem as associações locais e se atrevam a ir com as crianças experimentar jogos diferentes. A outro nível, julgo que seria importante existir maior sensibilização junto das comunidades escolares, associações de pais e autarquias para promover as ludotecas nas escolas e nos municípios como locais públicos onde as famílias e as crianças pudessem ter acesso facilitado aos jogos”, afirma.

Zero tempo de ecrã antes dos seis anos

As soluções existem, algumas mais difíceis de implementar do que outras, mas certamente nenhuma mais difícil do que a do neurocientista francês Michel Desmurget. Numa abordagem radical, sugere abstinência total dos ecrãs para as crianças antes dos 6 anos de idade, inclusive desenhos animados na televisão, e depois dos 6 anos não mais de 30 minutos por dia. No seu livro ‘A Fábrica dos Cretinos Digitais’, lançado em Portugal no final do ano passado, põe o dedo na ferida e contraria a versão de que esta será a geração mais capacitada de sempre, explicando que as competências que estamos a falar são tão simplistas como “ligar um leitor de som, ligar o ar condicionado, comprar um bilhete de comboio na Internet”, deixando-os sem “outras competências para pensar o mundo”. Não entende como as empresas de videojogos e redes sociais continuam a manipular as crianças sabendo o mal que estão a fazer e acredita que se está a levar a cabo uma “descerebração” inédita. Para Michel Desmurget, o processo da educação à distância foi um “desastre pedagógico” em França, prova de que o digital não é sinónimo de progresso.  “Há cada vez mais crianças com problemas de descoordenação, falta-lhes experiências suficientes por exemplo a usar as mãos. Se só usa o tablet e não se desenha o suficiente, não se brinca, perde-se a motricidade fina, não se desenvolve os nervos da mão. Em França e em muitos países, as crianças perderam 20% a 25% da capacidade pulmonar porque a atividade física diminuiu brutalmente. Não estamos a falar apenas de impactos em termos cognitivos e intelectuais, mas de impactos físicos”, aponta, numa entrevista anterior.

Compreende que se deve considerar também o conteúdo que está a ser visualizado e não só o tempo de exposição, mas “se as crianças usassem os ecrãs para ler o Guerra e Paz ou para consultar tutoriais sobre como se resolvem equações de segundo grau, não estaríamos aqui a falar”. O que fazem, na realidade, é “usar os ecrãs para entretenimento”, o que desperta o potencial para a adição, alertando que “há consenso de que a adição aos ecrãs existe e que partilha elementos em comum com a adição a substâncias”. Um risco que vem de mãos dadas com menor desempenho cognitivo e menor concentração. “A cada três ou quatro anos há um novo estudo sobre o uso de ecrãs, a cada estudo pensa-se que se atingiu um pico, mas no estudo seguinte o número de horas passado em frente aos ecrãs é maior”, refere Michel Desmurget, lembrando que entre os 2 e os 4 anos as crianças passam cerca de 2 horas e 45 minutos por dia em frente a ecrãs, “um quinto do período normal de vigília” gasto “em entretenimento que não constrói o cérebro e que, em muitos aspectos, torna difícil o seu desenvolvimento”. 50 minutos em frente a um ecrã, compara o profissional, são ao fim de dois anos, em termos de linguagem, “200 mil declarações, 850 mil palavras, perdidas. Numa criança de 2 anos, por cada hora em frente ao ecrã, remove-se quase 50 minutos de interacção verbal”, alerta Michel Desmurget, acrescentando que “num livro infantil, há provavelmente 30 a 40 palavras raras a cada mil palavras. Na Rua Sésamo, são duas ou três. Quando se olha para famílias com crianças que se saem muito bem e para as estratégias que adoptam: uma é o investimento que fazem na leitura, acho que ainda não inventámos nada melhor para a construção do cérebro, e a segunda é um controlo brutal do uso de ecrãs”.

Directrizes a seguir: OMS e American Academy of Pediatrics

A Organização Mundial da Saúde lançou recentemente recomendações para uma maior qualidade de vida das crianças com o título “Para crescer saudável, as crianças precisam de sentar-se menos e brincar mais”. Nesse texto, a organização apela a que as crianças com menos de 5 anos passem menos tempo sentadas em frente a ecrãs ou restringidas a carrinhos ou cadeiras e mais tempo a dormir um sono de boa qualidade e a brincar activamente. “Precisamos de trazer de volta a brincadeira livre das crianças”, frisa a OMS, incentivando actividades como a leitura, contar histórias, cantar e fazer puzzles, todas “muito importantes para o desenvolvimento de uma criança”. Um bom ponto de partida para começar a reduzir o tempo de ecrãs é recorrer às directrizes da American Academy of Pediatrics:

  • O tempo de ecrã deve ser sempre acompanhado para ajudar a criança a interpretar aquilo que está a ver
  • Zero tempo de ecrã para crianças antes dos 18 meses. Entre 18 e 24 meses algum conteúdo educativo e entre 24 meses e 5 anos o tempo máximo é de 1h/diária
  • Em idade escolar, devem ser estabelecidos limites de tempo e programas permitidos para um equilíbrio entre o tempo de ecrãs e outras actividades
  • Os adolescentes utilizam redes sociais que servem, muitas vezes, de suporte emocional e descoberta do seu lugar no mundo, mas esta utilização deve ser acompanhada de literacia digital, explicando as definições de privacidade e cuidados a ter na Internet
  • Deve garantir-se que os ecrãs não retiram tempo ao sono, actividade física e outros comportamentos importantes para um estilo de vida saudável
  • Definição em família dos tempos sem ecrã comuns a todos os membros, com os pais a dar o exemplo
  • A criança deve ter bastantes momentos preenchidos com actividades sem ecrãs, com interacções, ao ar livre, para promover a criatividade e desenvolvimento psicomotor
  • A televisão e outros ecrãs devem estar desligados nos momentos de brincadeira para que não haja distracções
  • Não é correcto utilizar tecnologia para sossegar a criança. Esta deve desenvolver mecanismos de autorregulação e aprender a lidar com a frustração. Experimente conversar sobre o que ela está a sentir, inventar alternativas, acalmar com estratégias para canalizar emoções

No artigo que escreveu, Teresa P. Marques lembra que “entre televisores, computadores, tablets e smartphones, uma família pode ter hoje em casa mais de 10 ecrãs” e que “quando a frequência e a intensidade de utilização são excessivas, correm-se diversos riscos que abrangem desde a saúde até ao desenvolvimento psicossocial das crianças e jovens”. Riscos como a falta de empatia, consequência da falta de interacção com os outros. “Relacionarmo-nos com uma máquina é bastante distinto do relacionamento face a face. Os jovens contestam esta ideia e afirmam que dialogam com os amigos através dos chats ou das câmaras dos computadores. Ainda assim, existe uma barreira que os impede de se desenvolverem socialmente de um modo mais saudável”, aponta. A psicóloga diz que cada família deve desenvolver as suas próprias regras e “estimular as crianças e jovens a praticarem actividades físicas, preferencialmente ao ar livre, e a conviverem com os seus pares, pois só deste modo poderão tornar-se adultos equilibrados e felizes”.

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