O Bastonário da Ordem dos Psicólogos Portugueses é claro: existem 2,5 psicólogos por cada 100 mil habitantes no nosso país. A procura por apoio psicológico ultrapassa largamente a oferta e, especialmente nos centros de saúde, a situação é crítica. Se os casos graves enfrentam listas de espera, aqueles que não sofrem qualquer doença ou perturbação mas que ainda assim precisam de ajuda não a têm. Nas escolas, o trabalho começa a ganhar terreno mas o principal problema, diz Francisco Miranda Rodrigues, é que o trabalho psicossocial não é como asfaltar estradas, os resultados não são imediatamente visíveis e isso faz com que os autarcas não o tenham na lista de prioridades.
O bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, dizia em Agosto do ano passado que “a saúde mental vai ser a grande pandemia deste século”. Concorda com esta afirmação?
Concordo que há talvez uma maior consciência e visibilidade de aquilo que são os problemas relacionados com a saúde psicológica e que, se quisermos ter uma sociedade mais inclusiva e ter as pessoas de uma forma mais equitativa preparadas para dar o seu contributo à sociedade, os serviços vão ter que ser mais acessíveis. Há alguns factores que, na organização social que temos, podem ser propícios para que as vulnerabilidades que as pessoas eventualmente tenham possam vir a ter como consequência o desenvolvimento de perturbação mental ou problema psicológico. Mas, se fizermos aquilo que hoje sabemos, com base na ciência e nomeadamente na ciência psicológica, que podemos fazer para prevenir situações dessas, para promover a saúde psicológica, isto não é uma inevitabilidade. Nós temos um contributo de vários factores para aquilo que é a situação portuguesa. Um dos factores é a literacia de saúde psicológica, a compreensão de como a nossa saúde pode ser promovida. Uma compreensão sobre aquilo que nós sentimos a cada momento, a que sinais devemos estar atentos, os significados possíveis desses sinais. O bê-á-bá destas coisas. Há emoções que, às vezes, não identificamos bem, sentimos tristeza ao mesmo tempo que raiva, e se nós não formos capazes de identificar e aceitar, não conseguimos fazer nada com o que estamos a sentir e portanto não conseguimos ultrapassar a situação.
Há um trabalho a fazer nesse sentido?
Esta literacia é um ponto muito importante, não só para a saúde psicológica, mas também para a saúde global. Quanto mais nós tivermos esta literacia desenvolvida, mais nós teremos certamente uma participação cívica muito mais rica na sociedade, toda a sociedade ganhará por si só. Depois, nós partimos por exemplo para esta pandemia já com um nível de algumas perturbações elevado na comparação com outros países da Europa, como é o caso da depressão. Se não dermos condições para que as pessoas os ultrapassem, são em si mesmo uma condicionante para o futuro.
“O sofrimento psicológico também significa uma maior probabilidade de desenvolvimento de problemas de saúde física”
A pandemia potenciou esses problemas?
A pandemia potenciou, agravou, criou. Os problemas não são de agora, mas agora ficou tudo mais visível. Há problemas que passaram a perturbações, o que não era um problema passou a ser… Depois, associamos os determinantes sociais, como por exemplo a pobreza e a exclusão, mais de 20% da população portuguesa vive em condição de pobreza ou de exclusão e está estudado que é um factor de risco relativamente ao surgimento de problemas psicológicos ou de perturbações; é, aliás, um círculo vicioso, ou seja, nós sabemos que uma pessoa que tenha problemas de saúde psicológica, mais facilmente pode vir a ter problemas financeiros e cair numa situação de exclusão ou pobreza, assim como pessoas que estão nessa condição terão uma maior probabilidade de poder vir a desenvolver problemas psicológicos ou perturbações e, portanto, este círculo tem de estar permanentemente a ser interrompido e isso significa ter medidas segmentadas destinadas a essa população. Antes de mais, termos presente do ponto de vista do desenvolvimento económico de que se estas pessoas ficarem para trás, quanto maior for este número, mais sofrimento vamos ter. O sofrimento psicológico também significa uma maior probabilidade de desenvolvimento de problemas de saúde física. Nós separamos permanentemente estas coisas mas elas estão interligadas, só estão separadas no discurso para que a saúde mental não fique esquecida.
Ainda existe o estigma de ir ao psicólogo?
As pessoas já olham de forma diferente mas isso não quer dizer que não exista estigma. Há dados que apontam que as coisas estão muito melhores a esse nível, temos na sociedade portuguesa cada vez mais profissionais de saúde mental e isso significa que há mais acesso a esses serviços. Se olharmos para trás, para o tempo da Revolução dos Cravos, as coisas mudaram imenso ao nível do acesso e da forma como se olha para a saúde mental; e se olharmos para os dados deste ano que passou, para a Linha de Aconselhamento Psicológico do SNS24, que efectuou mais de 75 mil atendimentos, não me parece que o estigma seja tão grande. Julgo que este dado reforça a ideia de que quanto mais acesso existir, menos estigma existe.
Mas essa procura foi certamente potenciada pela pandemia?
O que se sabe é que a pandemia trouxe um impacto maior sobre a saúde psicológica, todos os estudos apontam para isso, logo a probabilidade de as pessoas sentirem a necessidade de procurar apoio também aumentou, mas isso não elimina os dados que existiam antes. No distrito de Évora, existiam, antes da pandemia, situações de depressão que, quando as pessoas procuravam ajuda no Serviço Nacional de Saúde (SNS), tinham um tempo de espera que podia chegar aos quatro anos. A procura pelo apoio ao nível dos centros de saúde já existia e já era uma procura muito superior à oferta do serviço e não é porque não existem psicólogos suficientes em Portugal, ou psicólogos com uma especialidade clínica e de saúde suficientes, ou pessoas com uma especialidade avançada em psicoterapia em número suficiente, porque existem.
Existem no SNS?
Não, mas existem em Portugal e portanto a questão não é justificável com a falta de especialistas em Portugal. Sei que acontece em algumas áreas da saúde, mas não acontece na Psicologia. Temos mais de cinco mil especialistas. No SNS, ao todo, existem 1000 e nos centros de saúde existem cerca de 250. Perante estes números, a questão não é a falta de profissionais no SNS mas sim se o SNS lança concursos para os contratar, quando os lança e como os lança. Nós, Ordem dos Psicólogos, temos vindo a aumentar o número de iniciativas de modo a que cada vez mais se fale, se tenha acesso a informação e se saiba verdadeiramente como funciona a mente, os processos mentais, o nosso comportamento, se saiba mais sobre a psicologia e sobre o que os psicólogos fazem. Quase todos trabalham de forma directa ou indirecta para a promoção da saúde.
“O que fica sem resposta? As intervenções com pessoas que não têm doença, não têm qualquer perturbação, mas têm problemas psicológicos e precisam de apoio”
Entre os problemas de saúde psicológica, o mais frequentemente falado tem sido a ansiedade. É um problema recente ou apenas agora tem sido mais visível?
Há uma maior visibilidade e houve uma evolução de aumento aparente das situações relativas à ansiedade.
Houve um aumento, inclusive, de 50%, relativamente ao mesmo período do ano passado, de crianças e jovens a recorrerem às urgências com crises de ansiedade…
Trata-se de uma situação específica da pandemia. Em pandemia, a situação mais recorrente foi a situação de ansiedade aguda e no Serviço de Aconselhamento Psicológico do SNS24 é a situação mais comum; foi, aliás, para dar cobertura a situações deste género que o serviço foi criado. O tipo de intervenção muito breve pelo telefone não é possível com sucesso para todas as situações e problemas de saúde psicológica mas para a ansiedade aguda é útil e pode ser muito importante. O Serviço de Aconselhamento Psicológico pode dar resposta a algumas coisas mas para muitas pessoas seria importante poderem depois ser acompanhadas a seguir.
O SNS está preparado para lidar com este tipo de afluência?
Não está, mas já não estava antes. Quem possa pensar que, passando a pandemia, se resolve, desengane-se. Mesmo que todos os problemas de carácter psicológico originados pela pandemia desaparecessem com o vírus, nós continuávamos a ter as situações preocupantes que existiam antes e que não tinham resposta. Não há volta a dar, não temos capacidade de resposta para as situações mais graves, que são aquelas que estão previstas no Plano Nacional de Saúde Mental, que já existe há 10 anos e não foi executado. Dizem que vai ser executado agora com o dinheiro que vem para o Plano de Recuperação e Resiliência. Se acontecer, dará mais capacidade de resposta às situações mais graves e isso é importante porque são as pessoas mais vulneráveis de todas. Mas sabe o que fica sem resposta? As intervenções com pessoas que não têm doença, não têm perturbação, mas têm problemas psicológicos e precisam de algum apoio para poderem sair deles.
Estamos a falar de situações como pessoas com tendências depressivas que recorrem ao médico de família e a primeira resposta é a medicação; ou jovens que vão parar às urgências com crises de pânico e acabam por sair sem ferramentas para lidar a próxima crise?
Tal e qual, são dois bons exemplos. Tenhamos alguma esperança que algumas iniciativas no país venham a ser mais do que iniciativas esporádicas. Há um projecto-piloto a decorrer no Hospital de S. João com turnos de Psicologia na urgência, estão a testar a criação de uma resposta a esse nível. Mas, noutros locais, há a ideia peregrina de fazer uso de outros profissionais para remediar a coisa, mas não há forma de fazer intervenção psicológica sem psicólogos. Pode-se fazer outras coisas, mas promoção da saúde sem os profissionais da ciência que estudam comportamentos e processos mentais, e que se chamam psicólogos, não dá. Nos centros de saúde, dêem os responsáveis as voltas que derem, é a situação que está por resolver e que urge resolver. Existem 250 profissionais em Portugal nos centros de saúde, o que dá 2,5 psicólogos por 100 mil habitantes, ou seja, menos de 1 psicólogo por Concelho. É absolutamente impossível. Perguntam: Ainda faltam muitos? Não é preciso fazer grandes contas. Perguntam: Mas quantos são necessários? Dupliquem! E não sei se é suficiente, mas certamente não sobra, basta olhar para as listas de espera, mesmo com todos os “truques” que às vezes se faz.
Que truques são esses?
Criar, por exemplo, a regra da prioridade das primeiras consultas para acabar com a lista de espera. Acaba-se com a lista de espera da 1.ª consulta mas depois há a lista de espera para a 2.ª. E para esta pode esperar-se tanto ou mais do que para a 1.ª. E, no caso da Psicologia, isso é um disparate e um problema bastante difícil de resolver e vai demorar muitos anos a resolver porque estamos a falar de modelos diferentes. Existe o modelo biomédico e o modelo psicossocial e este último é incompatível com fazermos 1 sessão, se a pessoa precisa de acompanhamento, e pô-la a esperar 6 meses, no melhor dos cenários, pela próxima sessão.
Portanto, a missão do Plano Nacional de Saúde Mental – assegurar o acesso equitativo a cuidados de qualidade a todas as pessoas com problemas de saúde mental do país – não está a ser cumprida?
Não. Eu sei, não deve tardar a que se comece a ouvir que isto é uma defesa corporativa dos psicólogos, mas as pessoas sabem que não é, porque as pessoas sabem que não têm acesso. Pode inventar-se a história que se quiser e dizer “eles querem é arranjar mais trabalho para os psicólogos”. Mas as pessoas que procuram os serviços sabem que não é isso porque sabem que é difícil chegar aos serviços e portanto não vale a pena inventar. Um dos sítios onde tem melhorado é nas escolas onde, não é que seja fácil, mas é mais fácil, apesar de tudo. Ainda há muita coisa a melhorar, nomeadamente nas dinâmicas, no funcionamento, no tipo de papel do psicólogo dentro da escola, nas articulações entre os vários sistemas – escola, saúde escolar e centro de saúde. É preciso um papel mais holístico, mais junto ao projecto educativo da escola, mais preventivo e muito menos individual, mas esse trabalho só pode começar a ser feito quando houver um número mínimo de psicólogos a trabalhar por aluno. Houve uma evolução grande, há cinco/seis anos existiam 700 psicólogos nas escolas públicas, hoje existem 1700, é uma progressão notável num país como o nosso. Os principais aumentos são recentes, mais de 400 foram em 2020, portanto ainda vai demorar para que se possa analisar. Os resultados de prevenção e promoção vêm sempre a prazo e isso é um problema. Quando um decisor político tem de tomar uma decisão de investimento, sabe que alcatroar uma estrada fica logo visível. Não deve haver muitos autarcas que se possam dar ao luxo de, num ano como este, não ter planeado deixar uma série de estradas para alcatroar para as pessoas que têm memória curta e assim se vão lembrar daquilo que foi feito. Se não fizerem isso, na maioria dos casos, são penalizados. Mas é bom que não nos esqueçamos que a responsabilidade das coisas funcionarem como funcionam também é nossa, somos nós que avaliamos as coisas como avaliamos. Se dermos prioridades diferentes, se mostrarmos que temos prioridades diferentes e premiarmos as prioridades diferentes, elas acontecem.
“Nos centros de saúde, dêem os responsáveis as voltas que derem, é a situação que está por resolver e que urge resolver”
Depois de tanto tempo confinados e a ver os nossos entes queridos através de um ecrã, como voltaremos aos afectos?
Não há certezas nem dados muito fortes sobre isso. Sabemos que a maior parte das pessoas tem geralmente uma grande capacidade de adaptação, as pessoas têm mostrado muita resiliência, mas isso não significa que não sofram. Adaptamo-nos de forma a sofrer menos e, quando deixarmos de estar perante as situações que nos fazem sofrer, conseguimos voltar a viver de uma forma satisfatória.
Para os jovens, especificamente, há da ilusão das vidas perfeitas potenciada pela utilização das redes sociais. Pode ter consequências ao nível da criação de uma imagem distorcida da realidade?
Isso é sempre um risco para algumas pessoas, independentemente da idade. A questão está nas vulnerabilidades, se se é mais susceptível de se ser influenciado por determinado tipo de informação. Há pessoas que, perante esse tipo de imagem, criam comparações e formulam a ideia de que o mundo é uma coisa diferente daquilo que, na verdade, é, que todos estão bem e elas estão mal. Muitas vezes, quando as pessoas estão a olhar para as suas redes sociais e vêem informação toda no mesmo sentido, é provavelmente porque fizeram cliques em algumas coisas e é-lhes dado mais daquilo em que puseram likes, e isso cria a ilusão de que a realidade é assim, é uma bolha, e pode enviesar qualquer um de nós. Se forem os jovens que mais utilizam as redes, poderão ser os jovens os mais influenciados por este tipo de efeitos. Mas, se não forem, é quem as utiliza. Quem as utiliza está sujeito a estas situações.
Há uma grande discussão sobre os efeitos a nível psicológico do uso de filtros que alteram a imagem corporal. Cria uma mensagem subliminar de que o corpo ao natural não é suficiente?
Tudo isso é mais ou menos preocupante de acordo com o que sejam os factores protectores de quem está exposto a estas situações. É como nos jogos, jogar em si não é um problema, a partir de determinada intensidade e quantidade e face ao que possam ser outros factores protectores é que pode ser um problema. As coisas têm de ser contextualizadas, é importante conhecer os sinais: comportamento, expressão emocional, hábitos que se alteram. Se se alterarem, sim, podemos estar perante problemas. Alguém que experiencia a utilização de um filtro é diferente de alguém que só consegue expressar-se através de um filtro. Uma destas situações pode ser preocupante, a outra não terá qualquer significado.
Sem saúde mental não há saúde?
Mais do que a ausência de doença, é a existência de bem-estar, e essa dimensão é talvez a mais esquecida de todas. Se a saúde mental em si, enquanto parte da saúde, fica muitas vezes esquecida, o bem-estar, então, é, na maior parte dos casos, ignorado como fazendo parte da saúde. O espaço que existe entre um bem-estar intenso e um estado amórfico é um contínuo e temos de olhar cada vez mais para a forma como nos sentimos desta maneira, não como categorias estanques, não arrumando as pessoas como sendo uma só coisa. É muito comum ouvir dizer-se “o doente”. Não é o doente, é a pessoa que, naquele momento, sofre de uma doença. Chamar-lhe “o doente” desumaniza. Todos podemos estar melhor ou pior, todos podemos sofrer e é importante pensar desta forma. Se há uma correlação entre as diferentes dimensões da saúde – física, social e mental – não pode haver saúde física sem saúde mental como dificilmente também haverá saúde mental sem saúde física. O bem-estar tem um grande impacto e ainda é pouco valorizado.