Ali Alkhamis é o patriarca da primeira família síria a assentar arraiais em Portugal. Para chegar ao nosso cantinho à beira-mar plantado, passaram por 10 países, numa viagem que demorou dois meses, entre carro, barco, autocarro, comboio e muitos quilómetros a pé. Enfrentaram postos de segurança, temperaturas abaixo de zero e vários percalços até encontrarem um grupo de voluntários portugueses que lhes indicou o caminho. Hoje, vivem em Ovar e as três meninas Dima, Inas e Rhimas já assimilaram completamente a língua e cultura portuguesas.
A vida na Síria era “normal”, conta Ali Alkhamis, não muito diferente, na sua base, à de outros países, embora “faltassem algumas coisas ao povo. Não havia seguros de trabalho, os hospitais públicos não prestavam um bom serviço, muita gente pobre. A população gostaria de mudar algumas coisas”, conta. A mudança que veio, contudo, piorou as coisas. Com o Daesh, autodenominado Estado Islâmico, “a vida fica muito má. O Daesh entra na Síria em nome dos muçulmanos mas não são muçulmanos nem sabem as leis dos muçulmanos. A nossa lei diz para viver em paz, em segurança, sem marcar diferenças em relação às outras religiões”, afirma. Ali salienta que, com a entrada do Daesh no país, “os primeiros a perder foram os muçulmanos. Entraram para proteger os muçulmanos, mas apenas estragaram o nosso nome”, atira.
Os conflitos exponenciaram e os bombardeamentos viraram acontecimento diário. “Não conseguíamos dormir, andar na rua”, lembra. Um dilema entre sair para ir trabalhar na sua fábrica de costura, onde fazia fatos de homem à medida, ou ficar em casa sem sustento para comprar o essencial. Um dia, a família Alkhamis sofre de perto o terror de uma bomba que cai no seu prédio e os deixa sem tecto. “Eu não estava em casa mas estava a minha família, a nossa casa ficou completamente destruída. Como era no 3.º andar, com o fumo e o fogo, a minha mulher e filhas não conseguiam descer. Felizmente, os bombeiros vieram ajudar. Demoraram meia hora a extinguir o fogo”, recorda Ali, que teve de se mudar com a família para casa do irmão.
Sem alternativa a não ser fugir ou morrer
Um dos muitos momentos que contribuíram para a fuga do país. “Gostava de ficar no meu país, tinha tudo lá, mas não havia outra opção”, refere, lembrando o que mais pesou na decisão. “A minha filha mais velha, Dima, chegou a casa um dia e disse “meu pai, na escola ensinaram-nos sobre armas”. Ela andava no 1.º ano e eu fiquei muito preocupado, ela era tão pequena… São crianças, não devem aprender sobre armas”, salienta, explicando que “o Daesh gosta mais das crianças do que dos adultos porque a mente delas é como uma esponja. O Daesh já apanhou muitas crianças, fez-lhes uma lavagem ao cérebro e ensinou-lhes sobre terrorismo, bombas, infiéis, o que eles dizem que são os muçulmanos, as leis deles. Gostam de criar a sua própria geração. Não gosto disso, são apenas crianças. Quando a minha filha me contou, pensei “Agora deram uma lição sobre armas, o que vão ensinar na próxima? Como bater, como matar? Tínhamos de sair”, revela.
Fugir a uma “ditadura” em que eram obrigados a “seguir as leis do Daesh ou eram colocados na lista negra. O Daesh sabe quem gosta deles e quem não gosta. Têm muitas pessoas que passeiam na rua vestidas à civil, passam em frente a lojas e estabelecimentos, ao lado de pessoas que conversam, para ouvir o que se fala. Se apanham a falar mal, a criticar, escrevem o nome dessa pessoa. Se ouvirem coisas muito graves, mandam matar”, salienta, avisando que “quem entrar na cidade de Raqqa, cheira automaticamente o sangue. Não passa um dia sem eles matarem três, quatro pessoas, quem eles acham que fez algo de mal. Têm o seu próprio tribunal, com a lei deles. Gostam de pessoas certinhas, que lhes dão razão, que falam contra a América e a Europa. Nós só queremos viver em paz, queremos que a nossa vida fique melhor, não gostamos de armas, não gostamos de ver ninguém na rua morrer”, diz Ali.
Contornar a proibição do Daesh
Mas sair da Síria não seria tarefa fácil. “Precisei de saber como poderia sair porque quando o Daesh estava na cidade era proibido”, afirma. Começaram os preparativos e no dia 25 de Agosto de 2015 a família Alkhamis saiu de Raqqa às 4h rumo a Aleppo no que pareceu um percurso interminável. “Por causa dos aviões que atiravam bombas, conseguimos sair mais rápido. Combinei com o motorista que conhecia o caminho, porque não podíamos passar pelo Daesh, mas um quilómetro depois a minha filha Inas alertou-nos que, com a pressa, nos tínhamos esquecido da mais nova, Rhimas, em casa. Tivemos de voltar para trás”, conta. Já com Rhimas, retomaram caminho, sendo parados em diversos postos de segurança onde escaparam ao Daesh mas foram interrogados e revistados por outros grupos sírios com controlo sobre determinados territórios. “Em cada barreira, ficávamos meia hora, mas conseguimos passar”, diz.
“Gostava de ficar no meu país porque tenho tudo lá, mas não havia outra opção”
O objectivo era passar a fronteira para a Turquia num caminho que lhes tomou 12 horas a percorrer. “Há um caminho a Norte mas tivemos de ir para Sul por causa do Daesh”, explica. Chegados a Idlib, Ali fez novos contactos para entrar no país vizinho. “Combinamos entrar na Turquia pela noite e conseguimos. Andámos a pé desde a meia-noite às 5h00, por montanhas e vales, foi difícil. Só descansámos quando chegámos”, frisa. Uma viagem dura com três crianças pequenas a acompanhar. “Não havia outra forma, queríamos viver”, salienta Ali Alkhamis. Uma aventura “por obrigação” para “proteger a família. Ficámos na Turquia pouco tempo, comecei logo a procurar como poderia chegar à Grécia”, lembra. Sabiam que o barco era perigoso, então Ali optou por uma via alternativa até Alexandroupolis. “Combinámos com a pessoa e o plano era fazer três dias a pé e depois ir de carro até Alexandroupolis, onde alguém nos levaria subsequentemente até Atenas”, lembra.
Apanharam o táxi numa cidade perto de Istambul e fizeram o percurso até Edirne. Quando chegaram, “estava muito frio. A minha filha quando saiu do táxi começou a tremer. Pensei “Como é que vamos andar a pé estes três dias até à Grécia?”. Fomos tomar café e eu pedi ao motorista para nos levar de volta. Ele surpreendido disse “Mas já gastaram tanto dinheiro!”. Mas estava muito frio”, refere. Sem o plano A, viram-se obrigados a optar pelo “perigoso” plano B: o barco. “Procurei na Internet, encontrei um grupo e combinámos o preço, qual seria o caminho e o ponto de encontro: Esmirna. Paguei a travessia de duas, três horas até à ilha Samos”, revela, lembrando o medo que teve de perder a família e a vida naquele momento. “Tinha medo pelas minhas filhas e então comprei uma corda e amarrei a minha esposa Nada e as filhas a mim. Eu sei nadar muito bem mas a vida é muito preciosa, quando uma pessoa está aflita, protege primeira a sua vida, esquece família, esquece amigos. Então eu queria assegurar-me que, se o barco virasse, morreríamos todos juntos. Felizmente vivemos todos e chegámos a Samos”, conta.
“Todas as fronteiras tínhamos de entrar a pé porque estávamos ilegais, só tínhamos identificação síria e livro da família, não tínhamos passaporte, por isso às vezes andávamos 10km a pé para conseguir entrar”
Um percurso que envolveu dezenas de países
Depois da Grécia, seguiram-se muitos países – Macedónia, Kosovo, Sérvia, Eslovénia, Hungria – antes de chegarem a Viena onde os acasos da vida fizeram com que encontrassem um representante da associação Famílias como as Nossas, cuja missão era apoiar famílias de refugiados na sua vinda até Portugal. De repente, um país de que Ali só tinha ouvido falar por causa de Cristiano Ronaldo passou a ser o destino final da família. “Só sabia que era país com segurança e pessoas simpáticas”, diz. O culminar de uma viagem que durou dois meses, com saída de Raqqa (Síria) a 25 de Agosto e entrada em Lisboa (Portugal) a 3 de Outubro, num total de dez países percorridos por todos os meios: comboio, táxi, autocarro, barco e muitos quilómetros a pé. “Todas as fronteiras tínhamos de entrar a pé porque estávamos ilegais, só tínhamos identificação síria e livro da família, não tínhamos passaporte, por isso às vezes andávamos 10km a pé para conseguir entrar”, recorda.
Chegados a Lisboa, o tempo que fazia foi, desde logo, um bom prenúncio. “Estava sol, um tempo muito bom. Tínhamos vindo da Sérvia, Croácia, Áustria, onde fazia muito frio. Em Portugal, ficámos logo felizes, com pessoas a sorrir, os portugueses fizeram festa, o nosso estado emocional melhorou automaticamente”, diz. De Lisboa, rumaram ao Porto, onde ficaram cerca de um mês, até assentar arraiais definitivamente na cidade de Ovar, onde vivem até hoje. “Finalmente, sentimo-nos seguros, com estabilidade, as minhas filhas podiam dormir descansadas, tínhamos vizinhos simpáticos, verdadeiros, ao nosso lado”, afirma Ali, que pouco tempo depois de chegar conseguiu assegurar um trabalho numa fábrica de costura. “Os meus patrões eram espectaculares e os colegas também”, garante.
Durante quatro anos, não precisou de se preocupar com rendimentos mas então veio a pandemia. “A 15 de Março de 2020, a cerca sanitária fez com que fôssemos para casa e eu perdi o meu trabalho. A nossa fábrica entrou em insolvência”, refere. Durante todo este tempo, tem activamente procurado trabalho, mas sem sucesso. Algo que dificulta não só o dia-a-dia mas também a própria prática da língua portuguesa, que lhe custou tanto aprender. “Muito difícil, a língua latina é toda difícil mas o Português, especialmente, tem muitos verbos. Às vezes entretenho-me a procurar no Google, gosto de pesquisar para aprender. Quando chegámos, tivemos uma professora que nos ensinou e ajudou, aprendemos e quando trabalhei desenvolvi a língua”, explica. E a família? “As minhas filhas aprenderam mais rápido, agora são portuguesas, ninguém as conhece como sírias. Falam muito bem Português”, diz Ali sobre as pequenas Dima, 13 anos, Inas, 11 anos, e Rhimas, 9 anos.
Da Síria, ficam as memórias. “As minhas filhas esqueceram até porque habitualmente não falamos sobre isso. Pedem-me, às vezes, para falar da minha família, ainda temos família lá, e tenho irmãos na Alemanha, Turquia, Líbano”, conta, lamentando a dificuldade de ter a família espalhada pelo mundo. “Cada um está no seu sítio”, afirma. Gostava um dia de regressar para visitar “se a Síria se tornar um país seguro e democrático. Eu queria voltar, as minhas filhas não. Tenho memórias muito boas do meu país, tinha muitos amigos e vizinhos que gostava de visitar, embora não saiba agora quem ainda vive lá, quem foi embora. Quando chegámos cá, perdemos muitos números de telefone. Quando falo com o meu irmão sobre alguém, ele diz “fugiu para a Turquia, fugiu para a Alemanha”, às vezes morreram”, revela. Regressar definitivamente à Síria não está nos seus planos. “Nunca mais regressei, nunca mais saí de Portugal. Voltar a viver lá é difícil, não há vida lá, não tem coisas boas como tem aqui, electricidade, água, condições de higiene. A guerra destruiu tudo. Mas gostava de visitar, se a nossa cidade ficar segura”, remata.