Sandra Silva é pediatra, coordenadora da Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais do Centro Hospitalar do Entre Douro e Vouga e formadora de conselheiras em aleitamento materno. Em entrevista à Magafone, abordou os impactos da pandemia nas crianças e as vantagens da vacinação, assim como as patologias mais frequentes e a educação dos pais hoje em dia que se debate com uma penosa falta de tempo. Para a profissional, os pais são mais permissivos porque tentam compensar a ausência e só veremos as consequências de um equilíbrio difícil de encontrar, e do consumo sem precedentes de novas tecnologias, num futuro que se avizinha cheio de desafios.
Quais os principais efeitos que a pandemia Covid-19 já está a ter nas crianças?
Ainda estamos muito no início, é cedo para tirar conclusões, mas a verdade é que já vemos efeitos no imediato. Os mais pequenos acham normal alguém andar de máscara, mas sofrem com o isolamento e a falta de convívio. Estão fechados, não há festas de aniversário, saídas das creches. A minha filha teve uma única saída em dois anos, enquanto o meu filho, com a mesma idade, já tinha ido a lugares como o Portugal dos Pequenitos ou o Jardim Zoológico. Estão a ser criados de uma forma diferente e acabamos por nos valer das tecnologias, estão cada vez mais ligados à parte virtual, e menos ao contacto físico, mesmo com os avós, que são tão importantes na vida das crianças, esse relacionamento falha muito agora. No futuro, iremos perceber os efeitos a nível social, na forma de lidarem com os outros. Já nos adolescentes, que por si só é uma fase complicada, registamos muitos casos nas urgências de tentativas de suicídio, depressões, tenho muitos adolescentes deprimidos.
Como se dá apoio às crianças e jovens neste contexto de incerteza em que não podemos dar respostas sólidas?
Temos de estar atentos e ir falando com os pais. Como os adolescentes são muito fechados, é difícil percebermos se estão deprimidos porque vivem no mundo virtual com os colegas. Mas se me apercebo que tenho um adolescente que está a sofrer e precisa de apoio, oriento logo para um psicólogo. Tenho, inclusive, dois adolescentes que precisaram de apoio de psiquiatria, um deles mudou radicalmente do tempo pré-Covid para agora porque ficou positivo e acabou por infectar a avó, que faleceu. Como pediatra, tenho de ver os sinais e orientar os pais da melhor forma.

Há psicólogos que defendem que devia haver um acompanhamento psicológico de todas as crianças entre os 7 e os 9 anos, na fase em que começam a ganhar autonomia dos pais. Concorda com esta visão?
Não tanto aos 7, concordo que a partir dos 10, sim, deviam ter um apoio psicológico, porque é uma mudança muito grande no mundo deles, passam de um peixe grande num lago para um peixinho pequeno num oceano. Na primária são apaparicados, o professor conhece-os em todas as vertentes e depois passam para o 5.º ano e é difícil adaptarem-se, especialmente nos primeiros meses. Mas as crianças têm uma grande capacidade de adaptação, são raros os casos em que necessitam de um apoio especial prolongado. Na adolescência, há casos em que o apoio é essencial. Talvez se tivessem alguém com quem falar naquela fase complicada, em que não querem falar com os pais, seria benéfico para eles.
Com a evolução dos tempos, as crianças foram assumindo cada vez mais cedo os comportamentos típicos da adolescência?
Sim, agora têm acesso a muita informação, a coisas que nós só tínhamos acesso mais tarde, especialmente as meninas que amadurecem mais cedo do que os rapazes, e talvez ainda se vá antecipar mais. Como têm acesso ao Youtube, as meninas, já aos 4 anos, começam a desenvolver uma consciência social, em relação à roupa, à aparência, são mini-adolescentes. Aprendem mais cedo e contactam mais cedo com tudo.
Como se arranja um equilíbrio entre deixar as crianças desfrutar das novas tecnologias sem se tornar num vício ou obsessão?
Todos os pais têm esse problema, eu inclusive. O meu filho adolescente vive no mundo virtual. Temos de encontrar um equilíbrio que pode não ser o mesmo para toda a gente, não acho que a restrição seja o caminho. Havia um jogo que estava na moda que despertava nas crianças que o jogavam irritação e tendência para ficarem mais agressivas e os pais queixavam-se, nesse tipo de jogo aconselho sim a restrição, noutros jogos… Temos de pensar que isto é a nova forma de eles conviverem com os amigos. O meu filho pede-me e eu não vou proibi-lo. Durante a semana, evitamos, mas ao fim-de-semana, dentro do razoável, deixamos. É uma forma de conviver sem sair de casa. Neste momento, prefiro que ele esteja em casa a falar com os amigos através de um ecrã do que ir tomar café com eles. É preciso bom senso e gerir, consoante os hábitos de cada família.
Regressando à Covid-19, a vacinação das crianças tem dividido a sociedade e a própria comunidade médica. Qual a sua opinião relativamente à vacinação das crianças, sendo este um grupo com poucas probabilidades de desenvolver doença grave resultante do vírus?
Eu recomendo a vacinação. Sabemos que neste momento, com as variantes que temos, as crianças não têm doença grave e faz confusão aos pais que perguntam ‘porque é que vou vacinar os meus filhos se eles apanham e nem sequer têm sintomas?’. Tratando-se de crianças, a preocupação agrava-se, tive muitos pais que foram a correr vacinar-se, mas aos filhos já mostravam dúvidas. As anteriores variantes não davam sintomas, as crianças eram assintomáticas, esta última, a Ómicron, já dá sintomas ligeiros nas crianças, ficam com febre, tosse, dificuldade respiratória. Não é tão grave como nos adultos, os bebés não ficam internados por causa disso, mas é uma virose. A Covid antes passava-lhes completamente ao lado, agora não. E também temos de pensar em termos de comunidade, não podemos pensar só nas crianças e adolescentes, temos de ter uma visão global. A vacina é segura porque para estar no mercado tem de ser segura e eficaz. Até agora, não houve morte em nenhum país de uma criança por causa da vacina. Quanto mais cedo vacinarmos as crianças, mais cedo acabamos com esta pandemia. Até aos dois anos, quantas vacinas fazem as crianças? E os pais não questionam, porque estão no Programa Nacional de Vacinação. A da Covid faz-lhes confusão porque têm a ideia que foi feita à pressão, mas não, há outras vacinas que também têm pouco tempo e são administradas. A vacina contra a Covid-19 é uma recomendação da Direcção-Geral da Saúde e eu, como médica, recomendo-a. Assim que a minha filha fizer cinco anos, vou vaciná-la.

Os pais, neste momento, estão a vacinar os filhos com medo do vírus ou com medo da retaliação e discriminação que poderão vir a ser alvo se não o fizerem?
Acredito que seja por medo do vírus. Aos pais que me perguntam, recomendo, mas digo sempre: a decisão é vossa. Se o pai não quer fazer, não é obrigado. Ninguém pode obrigar ninguém a vacinar-se. É uma recomendação e não pode servir como factor discriminatório nem acho que seja por medo disso que não vacinam. É por medo do vírus e a noção que queremos que a pandemia termine da melhor forma possível. Quanto mais pessoas tivermos vacinadas, mais cedo chegamos lá. Em última análise, é uma decisão pessoal. Há pais que optam por não fazer as outras vacinas também e têm esse direito.
Às vezes esquecemo-nos que há mundo além da Covid-19…
Nos últimos dois anos, não se fala de outra coisa. Há outros vírus e bactérias que dão doenças bem mais graves nas crianças. Em Janeiro e Fevereiro do ano passado, deu-se um fenómeno. Como ficámos em isolamento, as crianças ficaram em casa e os vírus não tiveram hipótese de infectar. Não ficaram doentes, com as habituais viroses, e os pais diziam-me ‘o meu filho nunca andou tão bem’ porque andam sempre com tosse, nariz entupido, especialmente as crianças que estão nos infantários. Em Junho, normalmente a altura mais calma na Pediatria, porque com o tempo quente os vírus não têm tanta propensão para se multiplicarem, tivemos os internamentos de Pediatria cheios, com infecções respiratórias, como o vírus sincicial respiratório que provoca bronquiolites e que não aparecia nesses meses. Há, inclusive, um sistema montado de uma vacina para evitar a infecção por esse vírus, sobretudo nos prematuros, e tivemos de alterar a data da toma. Não sei como vai ser este ano. O Verão era habitualmente mais fácil, com uma gastroenterite ou outra, mas no ano passado, entre Junho a Setembro, tivemos os internamentos cheios com influenza, enterovírus, vírus sincicial respiratório. Os outros vírus continuam a aparecer. Eu costumava dizer aos pais para se preparem no Inverno que os filhos iriam certamente apanhar algumas infecções respiratórias, vírus próprios da infância, é assim que se cria imunidade, mas neste momento não sei o que lhes dizer. Estamos em Janeiro e temos apenas três crianças internadas na Pediatria, quando antes tínhamos internamentos cheios. Vamos ver o que vai acontecer nos próximos meses e durante o Verão.
Como é decidir na incerteza?
Os pediatras estão a tentar adaptar-se, avaliando mês a mês. Ainda não passaram dois anos desde que rebentou a pandemia, ainda sabemos muito pouco. Li que a Organização Mundial de Saúde disse agora que a pandemia está a terminar porque a Ómicron se está a espalhar com tanta rapidez e tantas pessoas estão a ficar infectadas que até Março vamos estar todos imunes. Não sei se assim será, mas a verdade é que minha família lá em casa, somos quatro, estamos arrumados, ficámos positivos na semana passada. A minha filha pegou-nos, o vírus infectou a turma toda dela da escola, que é o surto que existe actualmente, o pré-escolar, não usam máscaras e contagiam-se uns aos outros. A minha família nuclear está imune e as famílias dos colegas dela também, portanto nos próximos três a seis meses não passa Covid-19 por aqui. E somos apenas uma amostra. Correndo tudo bem, se calhar sim, vai acabar a pandemia. E eu nunca fui optimista, nunca acreditei antes quando diziam que ia acabar, mas agora há algum fundamento, os cálculos batem certo.
As outras patologias que habitualmente afectam as crianças continuam a ser comuns – otites, bronquiolites, problemas a nível gastrointestinal?
Sim, varicelas, otites, amigdalites, gastroenterites, continuam a existir, o tempo em que aparecem é que mudou. A varicela costuma aparecer no Verão e apareceu agora no Inverno. Bronquiolites, otites, amigdalites, adenoidites, infecções urinárias, são as principais, e depois temos o saco das viroses. Existem muitos vírus que provocam sintomas semelhantes e isso provoca confusão, temos de vigiar. Os pais querem sempre saber ‘mas que vírus é este?’, mas podem ser muitos vírus. A maior parte das infecções nas crianças são vírus, às vezes vamos a correr fazer antibióticos nas crianças, em otites ou amigdalites, mas a maioria das doenças são víricas. Três dias de febre, tosse, congestão nasal e depois passa.
Que situações levam a internamentos nas crianças?
Tem a ver com patologias associadas. Raramente uma criança que seja saudável vai parar aos cuidados intensivos com estas viroses. Temos poucas coisas mesmo graves nas crianças. O vírus sincicial respiratório, por exemplo, é especialmente agressivo nos prematuros, é um vírus que neles provoca doença grave. Doenças como a cardiopatia congénita, os vírus podem provocar doença grave. E outros casos mais específicos em que determinada criança desenvolve doença grave, porque tudo depende da receptividade individual de cada um, temos crianças que fazem pneumonias embora o vírus seja o mesmo de outras que não fazem pneumonias. No geral, e por isso escolhi a pediatria, a maior parte das doenças provocam mal-estar durante 2/3 dias, mas rapidamente se recupera.

Quais as principais dúvidas que os pais levam ao consultório do pediatra?
A nível da Covid-19, questionam sobre os sintomas, a forma como devem fazer o isolamento, o contacto com os avós e o tratamento. Sem ser relacionado com a Covid-19, o aleitamento materno, problemas de pele, o coto umbilical na fase em que está a cair, as cólicas e o sono.
Com a quantidade de informação que existe, os pais são mais exigentes?
Sem dúvida. São mais informados, mas a verdade é que também ficam confusos com a quantidade de informação. Acredito que seja porque quando acontece alguma coisa, em vez de recorrerem aos avós, à mãe que foi mãe, acham que aquele conhecimento está ultrapassado e então vão pesquisar à Internet. Vêm à consulta mais informados, mas menos seguros.
O pediatra Luís Januário disse, em entrevista, que “amamos cada vez mais as nossas crianças, mas passamos cada vez menos tempo com elas”. Que efeitos terá este difícil conciliar da vida profissional e pessoal nas crianças?
Temos de esperar para ver. Amamos mais e castigamos menos para as compensar pela falta de tempo que passamos com elas, eu acho que este é o maior problema dos pais. Por isso é que as crianças cada vez fazem mais aquilo que querem. Noto já uma diferença na educação entre os meus dois filhos, por exemplo, porque agora tenho menos tempo para a minha filha e deixo-a mais solta. A minha mãe quando vê certas situações diz ‘não sei como aguentas, eu não conseguiria’. Somos pais mais permissivos porque isso é a nossa forma de compensar o pouco tempo que passamos com os nossos filhos. Os nossos filhos passam mais tempo com a educadora e a auxiliar de sala do que connosco e somos uma geração que, ao contrário das anteriores, dá muito valor ao tempo. No futuro, desconfio que isto resultará em que não estejam tão preparados para as contrariedades da vida, não vão ter tantos mecanismos como nós tivemos para lidar com um ‘não’ e com a frustração. Mas só vendo depois a evolução e a forma de encararem as coisas. É muito complicado encontrar o equilíbrio.
Hoje as pessoas estão mais atentas à infância e percebem as capacidades intrínsecas que uma criança já carrega consigo?
Sim e por isso tentamos dar tudo porque dá-se mais valor. É uma sociedade mais exigente em termos de desenvolvimento, todas as crianças têm de ser o melhor da turma, jogar karaté e tocar um instrumento musical. Quando os pais começam a enumerar as actividades dos filhos e depois se queixam que passam pouco tempo com eles, eu sugiro sempre se não poderiam deixar uma das actividades. Mas a resposta é logo ‘a amiguinha da turma faz isto e aquilo’, as comparações. Temos de pensar: O que queremos? Que o nosso filho seja bom a música, bom nadador, tire cincos a tudo ou queremos ter tempo com ele, criar uma ligação, conviver com ele? Temos de aceitar as nossas escolhas e saber conviver bem com as decisões que tomamos. Se escolhermos encher a agenda, então o tempo que temos com ele deve ser aproveitado em pleno, a ler uma história, a ver uma série… Temos de encontrar equilíbrio porque não podemos deixar de trabalhar para estar com eles.
Há uma estimulação excessiva das crianças?
Devemos lembrar-nos que as crianças não precisam de fazer tudo. Eu até aos cinco anos vivi em casa com a minha mãe e isso para os pais hoje é uma fonte de preocupação. Perguntam-me: ‘A minha filha está em casa com a avó, não acha que ela tem de ir para o infantário?’. A criança que fica em casa até pode atrasar-se um pouco na linguagem, mas passados 3/4 meses na escola está igual aos outros. E cada um tem o seu tempo e aptidões, um é bom a Matemática, outro a Desenho, outro a Português. O importante é que se desenvolva de forma saudável. Os pais preocupam-se muito com o futuro e cai-se no exagero. A criança tem um ano e já dizem ‘ainda não caminha’. Vai para o 1.º ano e queixam-se ‘só tirou suficiente’. Aos três meses, perguntam-me o que podem dar como brinquedo para estimular. É preciso calma. A minha filha começou a caminhar aos 10 meses, o meu filho só aos 15. Agora correm, saltam e fazem as mesmas coisas. Tudo deve ser encarado com bom senso.

Sandra Silva
– Assistente hospitalar graduada de Pediatria
– Coordenadora da Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais do Centro Hospitalar do Entre Douro e Vouga (CHEDV)
– Formadora de Conselheiras em Aleitamento Materno e membro da Comissão de Promoção, Protecção e Apoio a Aleitamento Materno (CPPAAM)